14 de abr. de 2010

ABUSO SEXUAL, CONSEQUÊNCIAS, COMO AJUDAR E O QUE NÃO DIZER AS VÍTIMAS

Compreender melhor o abuso sexual, suas consequências e como ajudar a vítima a sair da repetição.

Sair da repetição, da sideração, da dissociação, da paralisia.
De vítima à sujeito de direitos!

O artigo que segue foi inicialmente escrito por Jacques e Claire Poujol, conselheiros conjugais e familiares, traduzido por Mirian Giannella, para o uso de terapeutas, psis e conselheiros. Útil para todos os profissionais da ajuda (assistentes sociais, médicos, etc.) mas, também, para as próprias vítimas, este texto permite compreender melhor o abuso sexual, suas consequências e como ajudar a vítima a sair da repetição. [Eu, tradutora, Mirian Giannella, vou me inserir no texto entre chaves, para acrescentar.]
Que o saiba ou não, algum próximo seu já sofreu e se tornou vítima de abuso sexual. E se for um psi, perceberá logo que várias dificuldades de muitas pessoas encontram aí a sua origem. Para estes homens e estas mulheres mortificados, haverá sempre o “antes” e o “depois” do abuso.
A nossa sociedade prefere ignorar este problema, atenuar a gravidade ou negá-la totalmente. Ou então, cheia de boa vontade, mas também de incompetência, propõe-se às vítimas “soluções” que fazem apenas agravar o traumatismo sofrido.

Respondemos neste artigo às perguntas:
• O que se entende por abuso sexual?
• Por que a vítima tem tanta dificuldade para falar do que sofreu?
• Quais estragos o abuso sexual provoca?
• Como ajudar a vítima a sair da repetição?
• Quem são os abusadores?

O que se entende por abuso sexual?
1. Um constrangimento ou um contato
Um abuso sexual é qualquer constrangimento (verbal, visual ou psicológico) ou qualquer contato físico, por qualquer pessoa que se serve de uma criança, adolescente ou adulto, com o propósito de uma estimulação sexual, a deles ou a de uma terceira pessoa.
Contato físico é, certo, mais um grave que um constrangimento verbal. Mas é necessário saber que qualquer abuso constitui uma violação do caráter sagrado e da integridade da pessoa humana e provoca sempre um traumatismo.
O constrangimento verbal designa: uma solicitação sexual direta; o uso de termos sexuais; a sedução sutil; a insinuação. Tudo isto em relação a uma pessoa que não o deseja ouvir.
O constrangimento visual refere-se: ao emprego de material pornográfico; ao olhar que insiste sobre certas partes do corpo; ao fato de se despir, de se mostrar nu, ou de praticar o ato sexual à vista de alguém. Aqui também, sem que a pessoa o deseje.
O constrangimento psicológico designa: a violação da fronteira entre o relacional e o sexual (um interesse excessivo pela sexualidade de seu filho/a) ou entre o físico e o sexual (lavagens repetidas; um interesse muito marcado pelo desenvolvimento físico de um adolescente).
O contato físico pode ser: bastante grave (beijar, contato do corpo através das roupas, que seja pela força ou não, com ou sem pressão psicológica ou afetiva), grave (contato ou penetração manuais; simulação de relações sexuais, contato genital, com ou sem violência física), ou muito grave (violação genital, anal ou oral, obtida de qualquer maneira que seja, pela força ou não).
2. A estratégia do abusador
Um abuso não é o fato do acaso por parte de quem o comete. Sendo um perverso, este premedita e organiza a relação esperando o momento em que seus fantasmas viciosos lhe parecerão realizáveis. A vítima ignora naturalmente tudo isto.
A estratégia perversa comporta em geral quatro etapas:
a. O desenvolvimento da intimidade e do caráter confidencial, privilegiado, da relação. Esta fase, mais ou menos longa (de algumas horas ou anos), visa a colocar em confiança a futura vítima que não duvida de nada.
b. Uma interação verbal ou um contato físico aparentemente “adequado” com a pessoa que vai ser abusada (confidências de caráter sexual, carícias nos cabelos, abraços amigáveis). A pessoa não tem medo, por que: em 29% dos casos, seu futuro abusador é um membro da família, em 60% dos casos um familiar ou amigo. Apenas 11% dos abusos são cometidos por um desconhecido.
c. Uma interação sexual ou um contato sexual
É a fase do abuso propriamente dito. Aqui, a vítima reencontra-se na mesma situação que um coelho que atravessa uma estrada à noite e é capturado pelos faróis de um automóvel: petrificado, paralisado, siderado, incapaz de reagir, deixa-se esmagar pelo automóvel. O abusador está consciente do que faz com sua vítima.
d. A continuação do abuso e a obtenção do silêncio da vítima pela vergonha, culpa, ameaças ou privilégios. Este silêncio raramente é quebrado. O abuso permanece um segredo absoluto durante muito tempo, às vezes por toda a vida.
Três sobreviventes das irmãs Dionne, as famosas quíntuplas canadenses, esperaram os sessenta e um anos para revelar, na sua biografia, que tinham sido sexualmente agredidas pelo pai.
Guardando o silêncio, a vítima faz-se, contra a sua vontade, de cúmplice do abusador, uma vez que a única coisa que ele teme é de ser denunciado. O fato de tornar-se assim, bem involuntariamente, seu aliado, reforça o desprezo que tem por si própria e a sua culpabilidade.
Será uma das tarefas do psi explicar que uma pessoa sexualmente abusada não é nunca culpada nem responsável pelo abuso. Não podia adivinhar que as duas primeiras etapas eram apenas uma estratégia do abusador.
Deverá também dizer-lhe que uma pessoa que está sob a dominação de um abusador só faz parar os abusos com a denúncia e revelando o que sofreu. Ora, falar, para ela, é muito difícil, por várias razões.

Por que uma vítima tem tanta dificuldade em falar do que sofreu?
1. Leva, às vezes, muito tempo para realizar que foi abusada
O tempo não conta para o inconsciente, ele está como que parado para a vítima: é, na maioria das vezes, o aparecimento de sintomas como depressão ou perturbações sexuais que a levará a deixar o seu sofrimento emergir na superfície e aceitar falar. É o primeiro passo para a cura.
Mas falar deste traumatismo, tomar consciência desta verdade: “Fui abusada”, pode ser um choque terrível. O conselheiro terá necessidade de tato e de grande compaixão para deixar a pessoa descobrir por si mesma e no seu ritmo, a amplitude do drama que viveu. Compreenderá a extrema repugnância que provoca admitir que o seu corpo e a sua alma foram devastados. Gostaria tanto de esquecer, não ter nunca vivido aquilo, que vai se refugiar ocasionalmente na recusa: “Aquilo não pode ter me acontecido.”
A pessoa será incentivada a continuar a falar se acreditarem no que diz (tem absolutamente necessidade de sentir que acreditam nela) e se evitar certas frases destrutivas como:
• - Ele cometeu só um erro, como fazemos todos.
• - Aconteceu só uma vez, afinal.
• - É tempo de virar a página.
• - Já faz muito tempo que passou

2. Sente-se culpada
Em seu foro íntimo, sem mesmo declarar abertamente, a pessoa pensa:
• Sou também culpada? Senti prazer?
• Poderia ter evitado?
• Colocado na minha situação, um outro teria podido se opor, se debater, fugir?
O psi pode ir adiantando as perguntas que não ousa exprimir, dizendo:
• Quem detinha o poder (parental, espiritual, moral, organizacional, físico, psicológico)?
• Quem era o adulto? O marcador social? O referente?
• Quem era o instigador, o organizador dos abusos?
• Quem poderia fazer cessar?

Pode fazer-lhe compreender que a sua culpa está ligada à defasagem entre a vivência passada (e as razões pelas quais a vítima não pôde impedir: a sua tenra idade, sua ignorância, sua total confiança) e a sua vivência atual, quando já é mais velha, menos ignorante, menos ingênua e já sabe se proteger. Crê-se culpada porque olha os acontecimentos passados com os olhos do adulto prevenido que é hoje. Ora, na época, não possuía as defesas necessárias para impedir o abuso.

Separar-se do agressor
[É de fundamental importância sair da culpa, perceber que houve crime, invasão de privacidade, abandono e negligência, e aprender que os lugares já estão dados há milênios, no mundo desértico que eles criam, e aprender a se defender e se situar na sua história.]
Pode-se também ajuda-la a diferenciar o ponto fraco do qual se serviu o perverso, por exemplo, uma necessidade de ternura completamente legítima, uma confiança cega, e o crime que cometeu, se aproveitando desta necessidade legítima de afeição ou da confiança, para saciar seus desejos imorais.
Desligar estes dois elementos é frequentemente um momento de verdade e um alívio para a pessoa, que faz o seu segundo passo para a cura quando não se sente mais responsável. [Nomear o crime, o criminoso e a arma do crime tem o efeito de separar a vítima do agressor e fazer com que a vítima restaure a sua dignidade de pessoa humana. É verdadeiramente reparador!]
Mas o caminho será ainda longo até cicatrização da ferida. A precipitação e a impaciência são os grandes inimigos do conselheiro (e do cliente) neste domínio.

3. Falar pode custar-lhe caro
Cada vez que a pessoa abusada mergulha no horror do seu passado, deve pagar um preço muito elevado. Tentando “esquecer” o abuso, virar a página, tinha construído certo equilíbrio, por exemplo, com os seus parentes. Se decidir fazer explodir a verdade, vai desorganizar este equilíbrio fictício e suscitar pressões dos parentes. Encontra-se sempre falsos “bons conselheiros” preocupados mais com a própria tranquilidade e pelo que dirão, defensores dos abusadores, que vão acusá-la de mentir ou exagerar, de despertar o passado e incita-la-ão a esquecer, ou mesmo “a perdoar”; o cúmulo é que corre o risco até mesmo de ser responsabilizada pelo abuso.
[É tradicional a culpabilização das vítimas.]
O psi deverá, então, apoiar, incentivar e assegurar a sua proteção material e psicológica. Ajudá-la a avaliar o preço da luta que deverá efetuar para sair do lamaçal do abuso sexual e realizar que o seu desejo de sair do sofrimento será ainda negado por aqueles que deveriam mais protegê-la: a família ou os responsáveis pelas instituições. [Ou fazê-la militar na área para mudar as circunstâncias e fazer a sociedade agir pela proteção das crianças. Precisamos sim ficar mais ativos contra as indecências que trazemos de priscas eras animalescas. A criança deve ser respeitada na sua integridade física e moral.]
É necessário notar que quando o abusador faz parte de uma instituição, qualquer que seja, esta decide frequentemente, por medo do escândalo, “acobertá-lo” e, por conseguinte, permanecer na recusa do abuso, mais do que reconhecer publicamente a existência de um perverso sexual na instituição. [Mas, estamos vendo até o papa ser responsabilizado e muitos padres se demitindo e sendo processados. É um avanço do Estatuto da Criança e do Adolescente! Mas é verdade que a cultura é permissiva para com os crimes sexuais!]
Há um consenso social de reprovação à pessoa que tem a coragem de remexer nestas coisas imundas: que ela continue como morta viva, não é grave. O mais importante, é que se cale.

4. Sofre de vergonha
Sartre disse que a vergonha é “a hemorragia da alma”. Um abuso sexual marca a pessoa a ferro e fogo, a suja, a leva a esconder-se dos outros. A vergonha é uma mistura de medo da rejeição e cólera para com abusador, que não ousa se exprimir. [Sente-se culpada pelo crime até nomear o agressor e o crime e a arma do crime. (N. da T.)]
O sentimento justo que deveria provar é a cólera. Provar este sentimento liberador ajuda-a a sair da vergonha. É necessário, às vezes, tempo para que chegue a exprimir a sua indignação face à injustiça que sofreu. Esta expressão da cólera poderá fazer-se seja de maneira real, frente ao culpado, ou, se não for possível para a sua segurança pessoal, de maneira simbólica. Em todos os casos cabe à vítima decidir. A vergonha está ligada ao olhar que a vítima leva sobre si mesma; vê-se como suja por toda a vida. É o seu olhar sobre si mesma que deverá se alterar, e isto alterando a sua maneira de pensar.

5. O desprezo
Sentindo-se envergonhada, a pessoa abusada tem duas soluções: desprezar-se a si própria ou desprezar o abusador e os semelhantes. Nos dois casos, o resultado é o mesmo: autodestruição, porque o ódio de si ou o ódio do outro são ambos destrutivos.
O desprezo por si própria pode referir-se ao seu corpo, a sua sexualidade, a sua necessidade de amor, a sua pureza, a sua confiança.
Este desprezo de si tem quatro funções: atenua a sua vergonha, asfixia as suas aspirações à intimidade e à ternura (desprezar-se anestesia o desejo), dá-lhe a ilusão de dominar o seu sofrimento e evita-lhe que procure a cura do seu ser.
Quando o desprezo por si mesma é muito intenso, pode levar à bulimia, à violência contra si e ao suicídio; nestes três casos, a pessoa pune o seu próprio corpo porque ele existe e tem desejo.

6. O verdadeiro inimigo
Se perguntar a uma pessoa que sofreu um abuso sexual qual é o seu inimigo, responderá sem dúvida: “É o culpado do abuso.” O que lhe parece evidente.
A vítima tem escolha: ou combate, cultivando o seu ódio para com o abusador, ruminando uma vingança contra ele; ou foge, procurando esquecer, endurecendo-se para não mais sofrer, fechando-se em si mesma, passa a ser insensível, de maneira a não mais sentir nem emoção nem desejo.
Mas estas duas soluções são vãs, porque o inimigo não é o abusador. Certamente, representa um problema, mas a boa notícia é que não é o problema essencial. O verdadeiro adversário é a determinação da pessoa em permanecer no seu sofrimento, a sua morte espiritual e psíquica e a recusa a voltar a viver. O inimigo reside, por conseguinte, paradoxalmente, na própria vítima!
Este terceiro passo para a cura é sem dúvida o mais difícil de cruzar. A pessoa deve compreender que tem na frente dela a vida e a morte, e que pertence apenas à ela permanecer na morte ou escolher viver.
Quando o conselheiro sente que ela tomou a decisão de sair da pulsão de morte para entrar na pulsão de vida, terá então sem dúvida a ocasião de lhe falar dos três grandes estragos que o abuso produziu na sua vida e que deverão ser reparados.

7. O sentimento de impotência
O abuso sexual foi imposto à vítima. Que tenha se produzido uma vez ou cem vezes, com ou sem violência, não altera o fato de que foi privada da sua liberdade de escolha.

Os estragos produzidos pelo abuso sexual
Estes estragos constituem umas torrentes tumultuosas que devastam a alma, e que inclui: o sentimento de impotência, o de ter sido traída e o sentimento de ambivalência, bem como vários outros sintomas.

O sentimento de impotência
O abuso sexual foi imposto à vítima. Que tenha se produzido uma vez ou cem vezes, com ou sem violência, não altera em nada o fato de que foi privada da sua liberdade de escolha.
Este sentimento provem de três razões:
Não pôde alterar a sua família disfuncional, se se trata de um incesto. Os seus parentes não a protegeram como deveriam, a sua mãe ou a sua sogra nada viram ou fingiram nada ver.
Que o abuso foi acompanhado de violência ou não, que haja dor física ou não, a vítima não pôde escapar, o que cria nela fraqueza, solidão e desespero. Além disso, o culpado serve-se da ameaça ou da vergonha para reduzir ao silêncio e recomeçar em toda impunidade, o que aumenta a sua impotência.
Não chega a pôr um termo ao seu sofrimento presente. Só a decisão de suprimir-se anestesiaria a sua dor, mas não pode resolver-se, então continua a viver e a sofrer.
b. Este sentimento de impotência provoca graves prejuízos
A pessoa abusada perde a consideração por si própria, duvida dos seus talentos e crê-se medíocre.
Abandona qualquer esperança.
Insensibiliza a sua alma para não mais sentir a raiva, o sofrimento, o desejo ou a alegria. Esconde e repele no seu inconsciente as lembranças horríveis da agressão sexual.
Pela força de renunciar a sentir a dor, torna-se como morta. Perde o sentimento de existir, parece estrangeira a sua alma e a sua história.
Perde o discernimento relativo às relações humanas, o que explica que as vítimas de abusos recaem constantemente nas garras de perversos, o que reforça o seu sentimento de impotência.

2. O sentimento de ter sido traída
Muitas pessoas ignoram o nome dos onze outros apóstolos, mas conhecem Judas, o traidor. Por quê? Porque a maior parte das pessoas considera que nada é mais odioso do que ser traído por alguém que se supunha amigo e respeitoso.
A pessoa abusada sente-se traída não somente pelo abusador em quem tinha confiança, mas também pelos que, por negligência ou cumplicidade, não intervieram para fazer cessar o abuso.
As consequências da traição são: uma extrema desconfiança e a suspeita, sobretudo em relação às pessoas mais amáveis; a perda da esperança de ser próxima e íntima de outro e de ser protegida no futuro, visto que os que tinham o poder não o fizeram; a impressão que se foi traída, foi porque mereceu, devido a uma falha no seu corpo ou no seu caráter.

3. O sentimento de ambivalência
Consiste em sentir duas emoções contraditórias ao mesmo tempo. Aqui, a ambivalência gravita ao redor dos sentimentos negativos (vergonha, sofrimento, impotência) que simultaneamente, às vezes, foram acompanhados de prazer, que seja relacional (um cumprimento), sensual (uma carícia), ou sexual (tocar nos órgãos), nas primeiras fases do abuso.
O fato que o prazer, às vezes, seja associado ao sofrimento provoca prejuízos consideráveis: a pessoa sente-se responsável por ter sido abusada, já que “houve” prazer; a lembrança da agressão pode retornar nas relações conjugais; não chega a desabrochar-se na sua sexualidade que é para ela demasiado ligada à perversidade do abusador; controla e mesmo proíbe-se o prazer e, por conseguinte, o seu desejo sexual.
O conselheiro deve explicar à pessoa que não é responsável por ter sentido prazer, porque é normal que apreciou as palavras e os gestos “de ternura” do abusador. É a natureza que deu ao ser humano esta capacidade de sentir prazer.
O que não é normal é a perversão dos que premeditaram estas atitudes afetuosas para fazer cair uma presa inocente na sua armadilha. É ele o único responsável.

4. Alguns outros sintomas
Pensa-se em eventual abuso sexual se o cliente:
- Sofre de depressões repetidas.
- Apresenta perturbações sexuais: falta de desejo, asco, frigidez, impotência, temor ou desprezo pelos homens ou mulheres, medo de casar-se, masturbação compulsiva. Na criança, esta perturbação do autoerotismo, assim como algumas enureses, podem fazer pensar em abuso sexual.
- Destrói-se pelo uso abusivo de álcool, de droga ou de alimento. A obesidade, em especial, permite às jovens ou mulheres que foram violadas se tornar, inconscientemente, menos atrativas e se proteger assim contra outra agressão.
- Sofre de dores de barriga, de infecções ginecológicas repetidas.
- Um estilo de relação com os outros muito caraterístico: ou é demasiado agradável com todos, ou é inflexível e arrogante, ou por último é superficial e inconstante.

Ajudar a vítima a voltar à viver
Esta deverá cessar de ouvir as vozes internas que a mantém na culpabilidade e vergonha e se pôr à escuta da voz da verdade, que a conduzirá para a libertação.
Deverá também abandonar as vias sem saídas que pessoas bem intencionadas, mas incompetentes (das que ajudam “pouco ajudadas”!) lhe propõem: negar o abuso, minimizá-lo, para esquecer, para perdoar o culpado sem que este se arrependa seriamente, para virar a página, para parar de reclamar, etc.
A via que leva ao bem-estar compreende duas etapas: olhar a realidade de frente, e decidir viver.
1. Olhar a realidade de frente
A pessoa deverá reencontrar as lembranças do abuso, admitir os estragos e gradualmente sentir os sentimentos adequados. [Momento de turbilhão, difícil sentir sentimentos adequados, realizar o abuso que não se tinha noção de que era crime, uma violação da integridade física e psíquica de indefeso, covardia imensa! Há um medo da vingança. Mas a vingança é a denúncia. E sem denúncia não se separa da culpa, que deve recair sobre o criminoso. Sem criminoso, a vítima fica identificada com o agressor se auto-agredindo si mesma. Por isto é tão importante denunciar. Sem nomear o crime, o criminoso e a arma do crime, a vítima continua vítima. E O Pacto do Silêncio e da desautorização e exclusão da vítima como louca reina absoluto e ela não recebe nada, dela só lhe é tirado, não recebe a transmissão de como se defender e defender os seus direitos. Há laissez-faire, cumplicidade, impotência, anuência, complacência... ]

a. Reencontrar as lembranças do abuso
A vítima preferiria esquecer, tanto a enoja ou a terrifica. Ou então, fala friamente como se fosse de uma outra pessoa que se trata. Mas, esta recusa é um obstáculo à cura. O abuso não deve ser apagado, mas nomeado. Assim, com muito tato, incentivar a lembrar do passado, às vezes muito remoto, porque só um abcesso esvaziado pode cicatrizar. O retorno das lembranças repelidas vai se fazer progressivamente durante a psicoterapia. O inconsciente da pessoa colabora ativamente por meio de sonhos, ou imagens que lhe vem ao espírito. Certos acontecimentos fazem também reaparecer os traumatismos esquecidos, por exemplo: um encontro com o abusador, uma gravidez, a menopausa, um outro abuso, o fato de que um de seus filhos atinja a idade que tinha quando foi abusada, o fato de reencontrar-se nos lugares da agressão, ou o falecimento do culpado.

b. Admitir os estragos
Este regresso penoso no passado vai permitir-lhe admitir as duras verdades seguintes:
• Fui vítima de um ou vários abusos sexuais. É um crime contra o meu corpo e contra a minha alma.
• Sendo vítima, não sou responsável deste crime, que só pude sentir.
• Em consequência destes abusos, sofro de sentimentos de impotência, de traição e de ambivalência.
• O meu sofrimento é intenso, mas a cicatrização é possível, se admitir que houve ferida.
Esta cicatrização levará tempo.
• Não devo envolver o meu passado com um véu de segredo e de vergonha; mas também não sou obrigada a falar a qualquer um.
c. Sentir os sentimentos adequados [eu aprendi que sentir é uma grande coisa, mas não é tudo. Pois a gente não se vê, só se sente. E para se ver é preciso se colocar no lugar do outro, do abusador no caso, o que causa repulsa, por se ter que realizar o gesto do abusador. Mas é a maneira de entender o crime que aconteceu. Assim, passa pelo olhar do outro e deste nos tornamos tão dependentes. O que segue também acho muita precipitação, mas ouvi Gikovate dizer: A maturidade chega quando a gente pode olhar pro mundo e dizer: Que pena que o mundo é assim...!]
A culpabilidade (que é um sentimento de extorsão muito frequente), a vergonha, o desprezo, a impotência, o ódio, o desespero, pela sua própria expressão vão sendo gradualmente substituídos por sentimentos mais amenos que são como a cólera para com abusador e os seus cúmplices, e a tristeza face aos estragos sofridos. Esta tristeza não deve levar à morte, ao desespero, mas à vida, ou seja a uma fé, uma esperança e um amor renovados.
O conselheiro favorecerá a expressão destes dois sentimentos, de maneira real ou simbólica, mas sempre em toda segurança, no quadro protegido das sessões de relação de ajuda.

2. Decidir voltar à vida
Por que uma vítima de abuso sexual deveria decidir voltar a viver, depois de tudo o que sofreu e sofre ainda? Simplesmente porque é melhor para ela escolher a vida e não a morte.
Escolher viver significará para ela:
a. Recusar estar morta
A vítima acha normal viver com um corpo e alma mortos; paradoxalmente, isto lhe permite sobreviver não se arriscando mais a sentir alegria ou dor.
b. Recusar desconfiar
A vítima desconfia dos seres humanos. Uma mulher violada, em especial, vê todo “macho” como “o mal”. Deverá aprender a transformar a sua desconfiança para com os homens em vigilância, o que é muito diferente.
c. Não mais temer o prazer e a paixão
Estes dois elementos a reenviam ao drama que sofreu, então ela foge. Ao faze-lo, priva-se destes dois dons. Sendo vítima do desejo (perverso, mas desejo do mesmo modo) de alguém, “lança o bebê com a água do banho”, ou seja rejeitando o abuso que sofreu, rejeita ao mesmo tempo qualquer desejo, até mesmo o seu. Deve realizar que não é porque alguém teve um desejo perverso para com ela que deve doravante renunciar ao seu próprio desejo.
d. Ousar amar de novo
Deverá progressivamente renunciar às suas atitudes autoprotetoras e o seu fechamento em si mesma para provar de novo a alegria de amar os outros e de estabelecer relações calorosas e seguras.
Deixará a sua carapaça para reencontrar um coração terno, capaz de correr o risco de amar aqueles que encontra. Abandonará as suas defesas, o que não quer dizer que não se cercará de proteções. Uma proteção não é uma defesa.
Descobrirá que, se é verdade que uma ou várias pessoas a traíram, a grande maioria é digna de confiança.

A revelação do abusador
1. Quem são?
Na sua grande maioria são jovens pessoas ou homens provindos de todas as classes da sociedade e de todos os meios. Na maior parte das vezes, fazem parte do ambiente da vítima: um colega, um vizinho, um chefe escoteiro ou um animador de jovens, uma babá, um professor, um patrão, um colega de trabalho, um padre, etc.
Muito frequentemente são também membros da família: o pai, o tio, o avô, o sogro (cada vez mais frequentemente devido ao aumento dos rematrimônios e das famílias expandidas), o irmão, o meio-irmão ou o quase irmão, o cunhado, o primo, etc. fala-se então de incesto ou abuso sexual intrafamiliar.
Trata-se, mais raramente, de uma pessoa desconhecida da vítima.
É necessário notar que 80% dos agressores foram eles mesmos vítimas de abusos no passado, o que não o desculpa de modo algum, mas pode explicar em parte o seu comportamento.

2. A Revelação
Uma vítima tem muita dificuldade para denunciar o seu agressor; revelará mais facilmente o abuso em si. No entanto, esta denúncia tem um grande alcance terapêutico e é necessário incentivar a quebrar o silêncio. Uma vez dito à outro, a palavra torna-se inter-dita e não mais interditada, como queria o perverso. Mas esta denúncia frequentemente é mal recebida pela sociedade. Enquanto uma pessoa sexualmente abusada não denunciar o culpado, é considerada como vítima. Mas o dia em que decide se referir à Justiça, consideram-na então como culpada de acusar alguém, e o crime cometido para com ela vai ser negado.
É por isso que, por exemplo, a grande maioria das mulheres violadas, se resignam a permanecer vítimas por toda a vida e, por conseguinte, a calar-se por medo de ser acusada do crime que denuncia. Ora, nunca deveriam hesitar a devolver o peso do crime à quem pertence: ao violador.
É necessário, no entanto, saber que, se denunciar tem um efeito terapêutico, o processo judicial é longo, penoso e dispendioso. Os interrogatórios repetidos, a falta de respeito e tato de certas pessoas, a vergonha de revelar a sua história na frente de todos, a impressão de não lhe darem crédito, provocam o que se chama de vitimização secundária. Cada vez que relata a violação, a mulher se sente de novo violada.
O apoio, material e psicológico, de organismos especializados na ajuda às vítimas de abusos sexuais, é precioso neste tipo de diligência, tanto mais que o julgamento pronunciado do culpado, na maioria das vezes clemente, parece decepcionante e injusto à vítima e reaviva a sua dor.
Se tiver o conhecimento de um caso de abuso sexual, a primeira coisa a fazer é afastar a vítima do agressor, a fim de evitar que este último recomece.
No caso específico de abuso sexual sobre menor, a segunda diligência é informar as autoridades competentes (serviços sociais e Conselho Tutelar).
A lei obriga a esta revelação, e deve-se, neste caso, quebrar o segredo profissional, senão se corre o risco de ser considerada pela lei como cúmplice. Esta denúncia visa proteger a vítima e outras vítimas potenciais, e a obrigar o culpado a parar as suas atuações.

As reações do abusador a sua revelação
Um recente Colóquio europeu sobre as violências sexuais estabeleceu que 82% dos abusadores não admitem a sua responsabilidade (53% negam totalmente os fatos). Só 18% dentre eles admitem os fatos, e ainda porque são obrigados após confrontação com as vítimas, e não sem a acusar de “tê-lo provocado”.
Esta negação dos fatos permite-lhes perseverar na sua perversão, e por conseguinte, não se privar do seu gozo, que só conta para eles.
Quando não podem mais negar os fatos, admitem-no minimizando ou negando as consequências desastrosas sobre as vítimas, sobretudo se o abuso for isento de violência física. Se tiverem remorso ou se lamentarem, nunca será por seus crimes, mas por ter-se feito denunciar e pelo dever de parar.
Se o psi mostrar-se indulgente para com um perverso, porque deseja regrar rapidamente uma situação que o excede ou desagrada, corre o risco de ser manipulado pelo abusador que fará prova de “se arrepender” para continuar em paz as suas atividades viciosas escondidas. Faz-se assim de seu cúmplice, o que é grave.
Uma reação possível do culpado de abusos é a seguinte: ele suja e se alia. Suja as vítimas ou outras pessoas inocentes acusando-as do mal que ele mesmo comete; ao fazê-lo alivia, assim, a sua culpa. Além disso, alia-se com os que podem se tornar seus aliados e seus defensores (um pai incestuoso alia-se a sua mulher de modo que o deixe abusar da sua filha).
Um perverso que é revelado e que recusa se arrepender pode cair no pânico, na depressão, no álcool ou no suicídio; mais frequentemente endurece-se e continua de maneira mais intensa as suas práticas.
É extremamente raro que um delinquente sexual arrependa-se realmente, (no máximo exprimirá vagas “lamúrias”), mas é necessário sempre dar-lhe a ocasião.

Em conclusão, todo terapeuta deveria se dedicar a formar-se neste domínio tão específico se quiser se ocupar de pessoas que sofreram deste drama que constitui o abuso sexual. [Ou qualquer crime violento contra a sua integridade física e psíquica]

Fonte: Claire et Jacques Poujol - www.relation-aide.com
Tradução: Mirian Giannella – http://apoioasvitimas.blogspot.com

8 de abr. de 2010

Psicologia das vítimas

Não há psicologia da vítima de incesto. A Europa e, particularmente a França, permaneceram nos anos 70 com as afirmações dogmáticas da psicanálise que atribui os testemunhos de agressões incestuosas a um desejo inconsciente. Hoje ainda, ouço dizer, numa clínica que acolhe anoréxicas, sobre aquelas que afirmam ter sido vítimas de incesto: “É um meio, para elas, de se tornar interessantes!”
Tampouco há psicologia do predador familiar.
Além do SAP (Síndrome da Alienação Parental) que justifica numerosos desvios, há este novo “conceito” das falsas alegações que permite, em numerosos casos classificar um caso assinalado e entregar de volta a vítima às suas caras mentiras.
Ora, é relativamente fácil que um clínico formado revele falsas as alegações quando existem. No entanto, pode-se distinguir, graças a uma entrevista exaustiva se a pessoa foi vítima de violencia durante a infância. Mas, poucos psis são formados nisto, sem falar “dos peritos” que expedem o caso em duas ou três horas e assinam um relatório “incontestável” o qual o juiz seguirá as conclusões. Percebe-se por conseguinte, em todos os níveis, as inércias de um sistema de recusa:
- o juiz, por preguiça não irá procurar um perito formado;
- o psi (quiatra ou cólogo) que tem seus dogmas;
- os advogados que frequentemente são inibidos e relativamente passivos;
- globalmente um público que negligencia largamente a importância destes assuntos;
- o sistema de ajuda médico e social que nunca calculou o custo social das sequelas de traumas sofridos na infância;
- um sistema moral que repousa ainda sobre a supremacia do macho.

Illel Kieser
Tradução Mirian Giannella

Memória Traumática e Vitimologia, Dra. Muriel Salmona, trad. Mirian Giannella

VIOLÊNCIA E VITIMOLOGIA

Lutar contra a violência passa, antes de tudo, pela proteção às vítimas!

As violências são uma infração grave aos direitos humanos fundamentais das pessoas e à sua integridade física e psíquica. Como se produzem essencialmente em meios que se supõe serem mais protetores como a família, o casal, as instituições de educação e de cuidados, o mundo do trabalho, são ocultas e maquiadas como amor, desejo, educação, segurança, rentabilidade. Este ocultamento tem por função proteger o mito de uma sociedade patriarcal ideal onde os mais fortes protegeriam os mais fracos, racionalizando assim as desigualdades e os privilégios de uma posição dominadora, que torna as violências possíveis. As vítimas que as sofrem ficam isoladas, condenadas ao silêncio na impotência são confrontadas à violências ainda mais traumatizantes tanto mais quanto são inconcebíveis. Estas violências que traumatizam são a causa de feridas psíquicas e de perturbações psicotraumáticas freqüentes e crônicas que terão um impacto catastrófico sobre a sua vida se não forem tratadas. Ora, estas vítimas traumatizadas são abandonadas, não beneficiam nem de proteção, nem de cuidados específicos, lhes resta sobreviver num grande sofrimento e numa insegurança total e de reparar-se como podem. E estas condutas de sobrevivência, fora da norma, para a maior parte das vítimas serão estigmatizadas injustamente como deficiências constitucionais e serão percebidas como uma inferioridade que justificaria a destituição e novas violências, enquanto são reações normais às situações violentas anormais que sofreram. Em contrapartida, um baixo número de outras vítimas reparar-se-á aderindo à lei do mais forte e reproduzindo as violências, alimentando a produção de novas violências num processo sem fim.
Estas conseqüências psicotraumáticas explicam-se por mecanismos neurobiológicos conhecidos há apenas poucos anos e é, perfeitamente, possível preveni-los ou trata-los eficazmente.
A memória traumática das violências é o sintoma central das perturbações psicossomáticas. É produzida quando mecanismos psíquicos e neurobiológicos de salvaguarda excepcionais se instalam para escapar ao risco vital que gera o estresse extremo desencadeado por violências traumatizantes. Com efeito, estas violências incompreensíveis e inconcebíveis provocam dissociação e sideração psíquicos, sem poder controlar a atividade da estrutura subcortical responsável pela resposta emocional, a amígdala cerebral, e nem a secreção hormonal de cortisol e de adrenalina que desencadeia. Ora, a quantidade crescente segregada destes hormônios constitui um risco vital cardiovascular e neurológico para o organismo. Face a este risco, o cérebro segrega, por sua vez, em urgência, drogas “duras” (morphine-like e kétamine-like) que fazem corte na emoção, desconectando a amígdala de outras estruturas, como o hipotálamo, produzindo uma dissociação. A resposta emocional apaga-se brutalmente e as vítimas dissociadas descrevem então um sentimento de irrealidade, ou mesmo de indiferença e de insensibilidade, como se tivessem se tornado simples espectadores da situação devido à anestesia emocional e física ligada à disjunção. A consequência imediata é que a memória emocional do acontecimento não poderá ser codificada pelo hipocampo nem se tornar uma lembrança autobiográfica “que se possa narrar”. Permanecerá presa na amígdala, condenada a permanecer inacessível à consciência, mas susceptível de reacender-se a partir de qualquer estimulação que recorde as violências sofridas, e fazendo, então, viver à vítima os mesmos sofrimentos físicos e psíquicos. A memória traumática é esta memória enquistada, semelhante à uma máquina do tempo que ameaça engrenar à qualquer momento de maneira incontrolável, mergulhando de novo a vítima em meio às violências sofridas e reproduzindo a totalidade ou parte da sua vivência sensorial e emocional. E esta memória traumática, que ameaça incessantemente explodir, transforma a vida das vítimas num terreno minado, gerando um clima de perigo e de insegurança permanentes.
Inicialmente as vítimas tentam impedir a explosão evitando todos os estímulos suscetíveis de desencadea-la. Tornam-se hipervigilantes e instalam condutas de controle e evitamento de todo o seu ambiente, tudo o que pode recordar, mesmo inconscientemente, as violências como estresse, emoções, dores, situações imprevistas ou desconhecidas… mas também, um contexto, um odor, uma voz. O que provoca fobias, retração afetiva, perturbações do sono, cansaço crônico, perturbações da atenção e da concentração muito prejudiciais para levar bem uma vida pessoal, social e profissional.
Mas, as condutas de controle e de evitamento são raramente suficientes, particularmente, durante os períodos de grandes mudanças (adolescência, encontro apaixonado, nascimento de uma criança, vida profissional, desemprego, etc.) e a memória traumática explode então, frequentemente, traumatizando de novo as vítimas, provocando risco vital, disjunção, anestesia emocional e nova memória traumática. Mas, rapidamente a disjunção espontânea não pode mais se fazer porque um fenômeno de tolerância às drogas duras segregadas pelo cérebro instala-se, à quantidade igual das drogas não fazem mais efeito, as vítimas permanecem, então, bloqueadas numa aflição e numa sensação de morte iminente intolerável. É então necessário cessar este estado e se anestesiar por fim, obter custe o que custar uma disjunção fazendo aumentar a quantidade de drogas que dissociam.
O que se pode obter de duas maneiras: acrescentando-lhes drogas exógenas - álcool ou substâncias psicoativas - que são elas, também, dissociativas, ou aumentando sua secreção endógena por agravamento do estresse. Para agravar o estresse, as vítimas põem-se em perigo ou exercem violências geralmente contra si mesmas, mas muitas delas preferirão exercer violências contra o outro, gerando uma memória traumática em novas vítimas, o que é um elemento muito importante sobre o qual retornaremos. Estas condutas de risco, condutas violentas e condutas aditivas cujas vítimas descobrem cedo ou tarde a eficácia sem compreender os mecanismos, nomeei-as condutas dissociantes. Estas condutas provocam a disjunção e a anestesia emocional procuradas, mas recarregam também a memória traumática, tornando-a sempre mais explosiva e tornando as condutas dissociantes sempre mais necessárias, criando uma verdadeira adição às condutas de risco e/ou violência. [Tudo isto tenta justificar a repetição da conduta violenta para a dissociação e anestesia emocional quando o fato é que o trauma se repete pois é o registro das percepções e reações gravado constituindo um modo de funcionamento] (N. da T.)
Estes mecanismos psicotraumáticos permitem compreender as condutas paradoxais das vítimas e o ciclo infernal das violências. São ignoradas infelizmente e os médicos que não são formados em psicotraumatologia não vão ligar os sintomas e as perturbações das condutas que apresentam as vítimas às violências que sofreram e, por conseguinte, não vão trata-las especificamente. Vão utilizar tratamentos sintomáticos ou tratamentos que tem efeito dissociante, mas sem o saber. Estes tratamentos (como a internação, a contenção, camisolas químicas, isolamento, choques elétricos, ou mesmo a lobotomia que ainda é utilizada em certos países….) são “eficazes” para fazer desaparecer os sintomas mais embaraçosos, por anestesiar as dores e as aflições mais graves, mas agravam a memória traumática dos doentes. A violência tem a triste capacidade de tratar de maneira transitória, mas muito eficaz as consequências psicotraumáticas, agravando-as. É a sua própria causa e o seu próprio antídoto. Mas a que preço!
Se a violência é paralisante e dissociante para a vítima, para o autor é um instrumento de dominação e uma droga que anestesia. A violência é um formidável instrumento para submeter e instrumentalizar as vítimas no objetivo de obter uma anestesia emocional do agressor. Torna-se assim uma fábrica de novas vítimas e novas violências.
As racionalizações habituais para justificar a violência são apenas astúcias: A violência não é uma fatalidade, não procede de um impulso agressivo original no homem (como diz Freud), nem de uma crueldade inata (como pensa Nietzsche). O ser humano é naturalmente empático como o provam todos os estudos feitos com bebês. Os que utilizam a violência preconizam o despeito e o ódio às vítimas consideradas como inferiores e sem valor, mas são violentos por terem eles mesmos sido vítimas no passado. Têm recurso à violência apenas porque é útil, possível e que é uma droga para eles.
A vítima não é responsável pela violência exercida contra ela, nada na sua pessoa nem nos seus atos a justifica, a vítima é sempre inocente da violência premeditada que se abate sobre ela. De fato, a vítima é permutável e escolhida, por constrangimento ou manipulação, para representar um papel num roteiro que não lhe concerne, montado pelo agressor.
A violência não é útil para a vítima, o “é para o teu bem” denunciado por Alice Miller, o “é por amor a você”, o “é para melhor protege-lo, educa-lo, trata-lo…” são mistificações. A violência é útil apenas ao seu autor, para alivia-lo e apenas a ele, e para paralisar e submeter as vítimas. O objetivo deste último é impor à pessoa que escolheu para ser seu “escravo-curativo e medicamento” para tratar a sua memória traumática. Instrumentaliza a vítima e aliena-a privando-a de seus direitos a fim de transforma-la em escravo submisso e que deverá desenvolver condutas de controle e de evitamento em seu lugar, para evitar a explosão da sua memória traumática, e será quem, se a explosão acontecer, deverá servir de fusível, de modo que ele possa dissociar por procuração e se anestesiar.
A violência é um privilégio, é o privilégio de uma sociedade desigual que distribui papéis de dominador e dominado e que atribui, a cada um, um valor em função do lugar que ocupa no sistema hierárquico imposto. Este sistema injusto permite a destituição de uma parte da população em benefício de privilegiados que têm o direito de utilizar a violência injustamente para submete-la e instrumentaliza-la.

A função principal da violência é, por conseguinte, enganosa, permite aos agressores apagar os vestígios da vítima que foram e escapar à uma memória traumática incomoda. Permite-lhes colocar-se ao lado dos dominadores privilegiados e assegurar-se uma total impunidade dissociando as vítimas, que, anestesiadas, calar-se-ão, o que terá por efeito apagar os vestígios das violências que semeiam ao longo de seu caminho. A vítima que odeiam são eles mesmos, vão faze-la desaparecer atacando-se à outra vítima à quem farão representar à força a sua história para melhor nega-la, desencadeando a sua própria anestesia emocional. Uma vez que não sentem mais nada, é que esta história não é a deles.
Neste sistema, a vítima tem uma posição paradoxal. É, primeiro, uma vítima substituível, indispensável para fazer funcionar a máquina de apagar o passado traumático dos agressores. Mas como ela é suscetível de recordar o passado traumático de todos os que estão em posição dominadora despertando sua memória traumática, ela pode pôr em risco toda a construção ilusionista da sociedade e é necessário apaga-la a qualquer custo. A vítima é, portanto, ao mesmo tempo, indispensável e indesejável. As vítimas devem ser erradicadas, mas será necessário criar incessantemente novas vítimas. Uma vez que foram vítimas, serão levadas a se esconder ou desaparecer se auto-destruindo, a menos que se tornem, por sua vez, agressores, quando a sociedade lhes dá a possibilidade e quando se autorizam, ou seja quando um lugar de dominador lhes é reservado. É por isso que não têm o direito de afirmar o seu estatuto de vítima, ao fazer serão imediatamente suspeitas de não dizer a verdade ou procurar vantagens.
Quando os agressores tiverem necessidade de vítimas para se anestesiar, vão selecionar entre as vítimas escondidas ou pessoas ainda não vítimas, mas vulneráveis (como as crianças) para fazer-lhes participar do seu jogo, cabe às vítimas se submeter e depois, de novo, se esconder ou desaparecer sem deixar vestígios. É, então, essencial para os agressores em busca de vítimas potenciais cultivar situações de discriminação ou cria-las com todas as peças, decidir que certas categorias de humanos são “inferiores” e são, por conseguinte, utilizáveis como vítimas “fusíveis”: crianças, mulheres, deficientes, velhos, judeus, árabes, negros, etc.… à revelia de toda coerência e justiça, de toda a decência e sem ter que prestar contas, visto que se trata - uma vez etiquetadas inferiores - de pessoas permutáveis que “não valem nada ou não muito”, se não for por sua virtude “curativa” mais ou menos importante.
Áreas inteiras de funcionamentos humanos fundamentais são assim instrumentalizadas para servir de “instrumentos de violências”, como a educação das crianças, o amor parental, a relação conjugal, a sexualidade, a religião, o trabalho, a política, o cuidado. Algumas destas áreas são quase inteiramente pervertidas pelas condutas violentas que dissociam, a tal ponto e há tanto tempo que todos acabam por considerar que esta violência é “natural”, e inerente a estes funcionamentos humanos, com uma tolerância inconcebível para violências que embora ultrajem os direitos humanos, podem se impor como incontornáveis; é o caso das violências educativas intrafamiliares, e as violências sexuais, particularmente a prostituição e a pornografia. [Acrescento o incesto e a pedofilia.] (N. da T.)

A loucura imposta
As violências impregnam de tal maneira e há tanto tempo as relações humanas que alteraram as normas e as representações que se pode ter. As violências saturam e desnaturam a relação amorosa, a parentalidade, a sexualidade, o trabalho, os cuidados, etc. Na nossa sociedade, os sintomas psicotraumáticos e as perturbações das condutas nunca são reconhecidas como consequências normais das violências, mas percebidas de maneira mistificadora e particularmente injusta como provindas das vítimas elas mesmas, ligadas à sua personalidade, à supostos defeitos e incapacidades, ao seu sexo, à sua idade, ou mesmo perturbações mentais abusivamente diagnosticadas como psicóticas.
As violências e as suas consequências psicotraumáticas são a causa de muitos estereótipos supostos caracterizar as vítimas vulneráveis, como as mulheres e as crianças. Os seus sintomas, ao invés de serem identificados como reativos, são considerados injustamente como naturais e constitutivos de seu caráter, de suas condutas e de sua sexualidade: as mulheres seriam mais passivas, mais emotivas, mais sensíveis, mais frágeis e mais depressivas que os homens, com uma sexualidade bem menos pulsional que eles, os adolescentes seriam mais propensos às condutas de risco, mais suicidas, etc. certamente, existe numerosos estereótipos “em espelho” sobre os homens que seriam “naturalmente” predadores, dominadores e pouco emotivos.
Estes estereótipos, parasitados pela violência onipresente, alteram profundamente as relações humanas e transformam o amor numa relação de possessão e de influência, a educação em treinamento e dominação, a sexualidade numa necessidade de instrumentalizar e consumir.
E num mundo onde de maneira ilegítima e absurda, a metade da população, por ter nascido de sexo feminino, sofre uma dominação de fato, os discursos desiguais poderão continuar a mistificar uma grande parte dos indivíduos e impor mentiras ideológicas que são facilitadoras de violências, “permissão para matar” oferecida à pessoas de ética e coerência intelectual duvidosas para “tratar” a sua memória traumática às expensas do outro.

A memória traumática quando não tratada é, então, o denominador comum de todas as violências, e é a consequência assim como a causa.
Resulta claramente do que precede que para interromper a produção sem fim de violência é necessário evitar que vítimas sejam traumatizadas e que desenvolvam uma memória traumática. Isto passa por uma proteção sem falha de qualquer ser humano de modo que não sofra violências, e mais particularmente, crianças e mulheres que são as vítimas mais frequentes. É necessário, então, proteger as vítimas potenciais que vivem os universos infelizmente conhecidos como mais perigosos, como o casal, a família, as instituições, o trabalho, e é necessário promover uma igualdade efetiva de direitos, a informação sobre as consequências da violência e a educação da não-violência. É necessário também proteger as vítimas traumatizadas e não as abandonar ao seu destino. Nenhuma vítima deve ser deixada sem atendimento e cuidado.

Tratamento do Agressor
Tornar a justiça acessível a toda vítima é imperativo absoluto e os autores de violências devem prestar contas. Mas isto não é suficiente, é necessário que os autores de violências sejam tratados a partir das primeiras violências, no âmbito de uma educação da não-violência com cuidados especializados para tratar a sua memória traumática e a sua adição à violência.
O tratamento da memória traumática consiste em fazer compreender os mecanismos psicotraumáticos, com o objetivo de compreender e se desculpabilisar e de evitar condutas dissociantes e fazer de modo que os doentes não se deixem mais petrificar pela falta de sentido absurdo das violências. O tratamento consiste em identificar, com o doente, a sua memória traumática que toma a forma de verdadeiras minas as quais se trata de localizar, e em seguida desativar e desminar pacientemente, restabelecendo conexões neurológicas, permitindo-lhe fazer relações e reintroduzindo representações mentais para cada manifestação da memória traumática. Trata-se “de reparar” a cisão psíquica inicial, a sideração psíquica ligada à irrepresentabilidade das violências. No decorrer da psicoterapia, o vivido, pouco a pouco, torna-se melhor representável e integrável, mais compreensível, o terapeuta ajuda a colocar palavras em cada situação, comportamento, emoção, e a analisar com precisão o contexto, as reações da vítima, o comportamento do agressor. Esta análise acentuada permite ao cérebro associativo e ao hipocampo retomar o controle das reações da amídala cerebral e codificar a memória traumática emocional para transforma-la em memória autobiográfica consciente e controlável.
O objetivo é nunca renunciar a compreende-lo, nem a dar sentido, a qualquer sintoma, pensamento, reação, sensação incongruente, pesadelo, comportamento que não é reconhecido como coerente com o que é e deve fundamentalmente ser dissecado para o associar com a sua origem, para o iluminar por relações que permitam o relacionar às violências sofridas.
Sem vítima, não há agressor
Este trabalho de compreensão permite ao doente evitar ser traumatizado novamente. À medida que as violências tomam sentido em relação ao passado traumatizante do agressor, que as vítimas se dão conta que as violências não as concernem em absoluto, que se jogam sobre outra cena, a da memória traumática do agressor e seu passado, o roteiro colocado em cena pelo agressor não funciona mais, tornando-se possível à vítima de não participar mais. A partir do momento em que a vítima compreende o que se passa, pode identificar a cena e o papel no qual o agressor tenta captura-la e liberar-se, não são mais a presa petrificada da qual o agressor precisa para a sua fantasia perversa. “O jogo” não funciona mais, a vítima pode se colocar “fora de jogo” e deixar o agressor face a uma cena na qual não pode mais jogar o papel de carrasco, por falta de vítima petrificada. A sua história que impunha à vítima volta-lhe em cheio na cara, em espelho. Então é trazido ao seu papel original, um papel de vítima que não quer, sobretudo, representar. “O jogo” não tem mais sentido, nem interesse e não é mais dissociante, o agressor deverá dissociar-se de outra forma ou acalmar-se. Na sua frente, a vítima tornou-se como Perseu face à Medusa, a sua compreensão é o escudo, o espelho oferecido por Minerva (deusa da sabedoria e da razão), evita-lhe que seja petrificada pelo olhar de Medusa.
Resultados
Temos tudo a ganhar com a aposta de proteger todas as vítimas a partir das primeiras violências: ganha-se fazendo cessar imediatamente as violências e colocando em segurança as vítimas, ganha-se fazendo respeitar os direitos das vítimas e permitindo-lhes obter justiça e reparar os danos causados pelas violências sofridas, ganha-se garantindo-lhes a sua não repetição, ganha-se de pôr um termo à impunidade dos autores mas propondo-lhes cuidados precoces para sair da sua adição à violência, ganha-se ao evitar a instalação de perturbações psicotraumáticas crônicas nas vítimas graças a cuidados especializados precoces. Evitando colocar no lugar condutas dissociantes, particularmente as violências exercidas contra o outro, pode-se opor-se à contaminação progressiva dos indivíduos pela violência, e ganha-se, por último, ao tornar a sociedade menos desigual.
Para lutar contra as violências é necessário, então, uma vontade política forte para proteger as vítimas, para fazer respeitar os direitos de toda pessoa de viver em segurança, para tornar a justiça eficaz, para formar em psicotraumatologia os profissionais que atendem as vítimas, e mais particularmente os médicos e outros profissionais da saúde, para criar centros de cuidados especializados, para informar o grande público sobre as consequências das violências e os mecanismos psicotraumatológicos, e educar ao respeito dos direitos do humano e a não-violência.
Bourg la Reine, 26 de dezembro de 2009

Dra. Muriel Salmona
Psiquiatra-psicotraumatóloga, responsável pela Antenne 92 do Instituto de vitimologia, Presidente da Association Mémoire Traumatique et Victimologie : www.memoiretraumatique.org

* Trabalhos da Dra. Muriel Salmona : La mémoire traumatique in L’aide-mémoire en Psychtraumatologie, Paris, Dunod, 2008 e obra no prelo: Violences impensées et impensables ou la mémoire traumatique à l’œuvre.

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