25 de jun. de 2010

EXPOSTOS AO RISCO

As consequências dos abusos na infância e o estresse pós-traumático
Milhares de crianças por todo o mundo são vítimas de incesto, de abusos físicos e sexuais e ao tráfico para fins de exploração sexual.
As conseqüências para as vítimas são desastrosas, afetando toda a vida desses sujeitos colocados em lugar de objetos passivos ao serviço deles. Sem saída senão a morte, obrigados a vender seu corpo por micharia, a se drogar para aceitar a degradação. Desvalorizados, desmoralizados, humilhados, destituídos da dignidade humana, escravizados, imobilizados, o que lhes dá lucro, portanto prazer.
Há milênios eles usam de estratégias perversas para expropriar os irmãos de seus direitos inalienáveis. Logo, há ruptura de contrato social, dos códigos de ética por parte daqueles que deveriam nos proteger! Sociedade criminosa! Todos omissos confundindo a vítima com o criminoso, para a punição das vítimas. Esta é a estratégia deste jogo perverso em que eles sempre ganham.
Estamos expostos ao risco, ameaçados de morte por quem deveria nos proteger. Não se tem a quem apelar?
Os sintomas do estresse pós-traumático
Tal ruptura intencional é que reitera o estado de estresse pós-traumático que captura a vítima indignada com a desmoralização constante e a recusa da aceitação dos fatos. Não há reparação? Depois dos abusos, o cinismo da sociedade, a omissão, a ignorância. Crianças como presas indefesas do tráfico de todo tipo.
A vítima fica em estado de estupefação, fica siderada, com o trauma atuando no pano de fundo, o que causa dissociação, divisão da psique, paralisia, anestesia, alternando com fases maníacas, de excitação. Possível bipolaridade entre mania e depressão.
O trauma fica se repetindo e toma a forma de sonhos, pesadelos, ansiedade, reações exageradas e até violentas em sua defesa e, às vezes, a necessidade compulsiva da evocação dos fatos traumáticos.
Deve-se compreender que o dano fica pedindo reparação.
Lembranças dolorosas retornam e aniquilam a auto-estima do sujeito, com depressão, idéias de suicídio, problemas na vida sexual com ausência de prazer denotam a interdição à vida causada pela ameaça de morte que o trauma significa.
A criança que teve seu corpo violado, fica arrombada, aberta a novas agressões, expondo-se à situações de risco. A vítima fica com o agressor dentro dela, fica identificada com o agressor, o seu desejo se torna o desejo dele, fica dominada, presa na armadilha enquanto objeto passivo, não consegue se desvencilhar. O agressor age por ela, a boicota, a agride, a manipula. Ela fica constrangida em um corpo que não lhe pertence mais.
Por isto, a vítima deve ser tratada e não deixada no abandono e negligência, todos se fazendo de surdos, destituindo-a da sua verdade, da verdade da sua história. A ferida pede tratamento para cicatrizar, o buraco deve ser cheio de amor e carinho para fechar. As artes são um bom caminho para a expressão das dores e feridas profundas, que significam sua morte em vida.
Um caminho para as vítimas
A vítima precisa se separar do agressor de qualquer forma, de todas as formas, separação tanto simbólica, quanto no imaginário, como no real. As representações simbólicas fazem efeito de separação, assim escrever, desenhar e vivenciar através do teatro catártico são caminhos.
É preciso ouvir e sancionar o que a vítima, muitas vezes, criança sem os elementos para compreender o vivido, relata do que sente.
É preciso dizer à vítima que ela tem o direito de se defender, de dizer não, direito ao desejo e de escolher o seu projeto de futuro! A gente não nasce sabendo, mas tem uma noção, ainda não nomeada, e a realidade confunde. É preciso nomear os direitos. Precisa que a vítima comece a se defender e para isto basta ela saber que tem direitos. Aí começa a se separar a vítima do criminoso.
A omissão de todos é muito grave
É de importância capital para a vítima que se nomeie o crime e o criminoso.
A interdição que deveria recair sobre o ato imundo do abusador recai sobre todos os atos da vítima que fica com seu ser paralisado, fica ela interditada. Para a vítima existe sempre o antes e o depois do trauma. Ao denunciar, testemunhar, relatar a vítima se desinterdita e volta à vida, basta acompanhar e orientar, pois a sociedade é feita para encobrir a tirania, e é preciso vencer muitas barreiras da opressão ambiente.
É preciso dizer que o ato foi imundo, indevido, que foi invasão de privacidade, desrespeito, que o abusador não tinha esse direito, que todos devem proteger os indefesos, que as relações devem ser consentidas e não com adolescentes e crianças, seres em desenvolvimento.
Propiciar um lugar de sujeito ativo à vítima dando-lhe possibilidade de expressão e ouvindo-a, sancionar a sua verdade.

Mirian Giannella é socióloga e psicanalista, coordenadora do
Observatório da Clínica
Blog Apoio às vítimas
http://apoioasvitimas.blogspot.com
Deixe seu testemunho!
apoioasvitimas@gmail.com

14 de mai. de 2010

Os sintomas do estresse pós-traumático

Repercussões Psiquiátricas e Psicosociais a longo prazo
O estado de estresse pós-traumático
tradução Mirian Giannella

O estado de estresse pós-traumático representa a repercussão psiquiátrica mais característica e mais grave a longo prazo.
A repetição é o sinal patognômico do traumatismo psíquico (11). Toma a forma de sonhos, de pesadelos, até necessidade compulsiva de evocação dos acontecimentos traumáticos, passando por flash backs e lembranças dolorosas que reproduzem o acontecimento traumático.
Definição do PTSD no DSM IV (o DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual - Revisão 4) é um instrumento de classificação que representa o resultado atual dos esforços prosseguidos há cerca de trinta de anos nos Estados Unidos para definir cada vez mais precisamente as perturbações mentais. Foi publicado pela Associação americana de psiquiatria em 1994. Trata-se da 4ª versão do DSM.)
A. O sujeito foi exposto a um acontecimento traumático no qual os dois elementos seguintes estavam presentes:
1. O sujeito viveu, foi testemunha ou foi confrontado a um acontecimento ou a elementos nos quais os indivíduos poderiam ter morrido ou foram gravemente feridos ou ameaçados de morte ou de graves lesões ou durante os quais a sua integridade física ou a de outro foram ameaçadas.
2. A reação do sujeito ao acontecimento traduziu-se por um medo intenso, um sentimento de impotência ou de horror.
B. Sintomas de intrusão
O acontecimento traumático é constantemente revivido de uma (pelo menos) das maneiras seguintes:
1. Lembranças repetitivas e invasoras do acontecimento provocando um sentimento de aflição e compreendendo imagens, pensamentos ou percepções (jogo repetitivo que exprime temas ou aspetos traumáticos na criança)
2. Sonhos repetitivos do acontecimento que provocam um sentimento de aflição (sonhos aterrorizantes na criança)
3. Impressões ou atuações repentinas como se o acontecimento traumático se reproduzisse (ilusões, flash-back, alucinações)
4. Sentimento intenso de aflição psíquica quando da exposição à índices externos ou internos que evocam ou assemelham-se à aspetos do acontecimento traumático causa;
5. Reatividade fisiológica quando da exposição à índices internos ou externos que podem evocar um aspeto do acontecimento traumático em causa.

C. Sintomas de evitamento
Evitamento persistente dos estímulos associados ao traumatismo e émoussement da reatividade geral, com pelo menos três das manifestações seguintes:
1. Esforços para evitar os pensamentos, sentimentos ou conversações associados ao traumatismo;
2. Esforços para evitar as atividades, lugares ou pessoas que despertam lembranças do traumatismo;
3. Incapacidade a recordar-se de um aspeto importante do traumatismo;
4. Reação nítida de interesse por atividades importantes ou redução da participação nestas atividades;
5. Sentimento de distanciamento do outro ou de tornar-se estranho em relação aos outros;
6. Restrição dos afetos (por exemplo: incapacidade de provar sentimentos ternos)
7. Sentimento de futuro “bloqueado” (por exemplo: não poder fazer carreira, casar-se, ter crianças, ter um curso normal de vida)

D. Sintomas Neurovegetativos
Pelo menos dois sintomas persistentes traduzem uma ativação neurovegetativa:
1. Dificuldades de sono ou de sono interrompido
2. Irritabilidade ou acessos de cólera
3. Dificuldades de concentração
4. Hipervigilância
5. Reação de sobressalto exagerado

E. Os sintomas dos critérios B, C e D duram mais de um mês.
F. A perturbação provoca um sofrimento significativo ou uma deterioração do funcionamento social, profissional ou outros domínios importantes.

fonte: AIVI
http://aivi.org/en/vous-informer/consequences-de-linceste

12 de mai. de 2010

Às custas das vítimas

O alto preço pago pelas vítimas

As vítimas de incesto sofrem de um grande número de patologias em proporções maiores do que a população francesa:
Depressão: 98% das vítimas indicam sentir atualmente (72%) ou ter sentido no passado (26%) o sentimento regular de estar muito deprimida, enquanto a proporção de Franceses que vive a mesma situação é claramente menor (56%, dos quais 19% a vivem atualmente). As vítimas estão mais sujeitas a comportamentos de risco ou à drogadição como fumar mais de 10 cigarros por dia em média (55% contra 44% em média dos Franceses), de beber mais de 3 copos de álcool por dia (30% contra 17%) ou consumir droga toda semana (27% contra 9%). A grande maioria delas sofre de perturbações compulsivas alimentares como a anorexia ou bulimia (76% contra 9% de Franceses como um todo).
Tentativas de suicídio: 86% das vítimas indicam ter ou ter tido recorrentes ideias ou impulsos suicidas, situação que encontram apenas 14% dos Franceses. Mais grave, a maioria das vítimas já tem passagem ao ato, dado que 53% já tentou o suicídio, das quais, um terço, várias vezes.
O fato de ter sofrido incesto tem múltiplas consequências na vida diária das vítimas. O traumatismo é quase permanente. A lembrança da agressão incomoda frequentemente (94% conhecem esta situação, dos quais 74% vivem ainda atualmente) e têm regularmente pesadelos muito violentos ou perturbadores (86% dos quais 49% atualmente).
Isso tem impacto sobre a vida sexual (77% estão ou já estiveram na impossibilidade de ter uma relação sexual ainda que desejassem) e profissional (68% estão ou estiveram na impossibilidade de concentrar-se ou exercer uma atividade profissional).

A divulgação dos fatos: um processo longo e doloroso
A divulgação intervém em média 16 anos após os fatos. Para cerca de um quarto das vítimas (22%), mais de 25 anos se escoaram antes da primeira evocação aos fatos, um terço, o fez fora do círculo familiar: a primeira vez que falaram, só 28% das vítimas abordaram o assunto com um membro da família, amigos, cônjuges ou especialistas privilegiados. Em contrapartida, 77% das pessoas testemunharam do que viveram à família. Testemunho que não é bem acolhido por uma escuta atenciosa e generosa: quando revelaram pela primeira vez, a maioria das vítimas (55%) indica que seu interlocutor nunca mais falou com elas. Mais grave, uma vítima em cada cinco indica que este último pediu-lhe ou aconselhou-a a guardar silêncio ou pior, colocou em dúvida o seu testemunho acusando-a de mentir.
A confrontação com o agressor é rara e difícil: a maioria das vítimas (56%) nunca falou do que se passou com seu agressor e, quando o fizeram, este último, na maioria dos casos (54%), negou os fatos.
Os fatos traduzem-se muito raramente pela saída judicial. Assim, só 30% das vítimas denunciaram e, quando o fizeram, majoritariamente não houve processo. As pessoas que não denunciaram afirmaram ter agido assim porque os fatos estavam prescritos, enquanto 35% explicam que tiveram medo de serem rejeitadas pela família.
PESQUISA REALIZADA PELA AIVI – Associação de Ajuda às Vítimas de Violência
http://aivi.org
Tradução Mirian Giannella para o Observatório da Clínica
http://apoioasvitimas.blogspot.com

8 de mai. de 2010

A criança sob terror

A ignorância do adulto e seu preço

1. Toda criança é sempre inocente.
2. Toda criança tem necessidades inegáveis, nomeadamente de segurança, afeição, proteção, contato, sinceridade, calor e ternura.
3. Essas necessidades são raramente satisfeitas, ao contrário, são exploradas por adultos aos seus próprios fins (traumatismo de abuso perpetrado sobre a criança).
4. O abuso que sofre a criança tem consequências para toda a vida.
5. A sociedade está ao lado do adulto e acusa a criança do que lhe foi feito.
6. A realidade do sacrifício da criança sempre é negada.
7. Continua-se por conseguinte a ignorar as consequências deste sacrifício.
8. A criança, abandonada na solidão pela sociedade, não tem outra solução senão recalcar o traumatismo e idealizar quem lho infligiu.
9. O recalcamento gera neuroses, psicoses, perturbações psicossomáticas e crimes.
10. Na neurose, as verdadeiras necessidades são recalcadas e negadas e o sujeito vive no lugar delas, sentimentos de culpa.
11. Na psicose, o abuso é transformado em representação delirante.
12. Na perturbação psicossomática, a dor do mau trato é vivida, mas as causas verdadeiras deste sofrimento permanecem ocultas.
13. No crime, a confusão, a sedução e os maus tratos sofridos encontram sempre novas abreações.
14. A terapia pode ter êxito se não negar a verdade da infância do doente.
15. A doutrina psicanalítica “da sexualidade infantil” inscreve-se em apoio cego à sociedade e legitima o abuso sexual perpetrado sobre a criança. Acusa a criança e poupa o adulto.
16. As fantasias estão ao serviço da sobrevivência, ajudam a exprimir a realidade insuportável da infância e, ao mesmo tempo, a escondê-la e fazê-la parecer mais inofensiva. Um acontecimento ou um traumatismo fantasiado supostamente “inventado” abrange sempre um traumatismo real.
17. Na literatura, assim como na arte, nos contos e nos sonhos exprimem-se, de forma simbólica, experiências recalcadas da primeira infância.
18. Dada nossa ignorância crônica da situação real da criança, esses testemunhos simbólicos dos tormentos são, não apenas tolerados, mas até mesmo muito apreciados na nossa civilização. Se compreendessem o plano oculto desses atos, a sociedade os rejeitaria.
19. As consequências de um crime cometido não são apagadas pelo fato de tanto o criminoso quanto a vítima estarem cegos e perturbados.
20. Pode-se evitar novos crimes, se as vítimas começarem a ver claramente; a compulsão à repetição cessa ou será enfraquecida.
21. Na medida em que permitem descobrir irrefutável e claramente a fonte dos conhecimentos ocultos das vivências na infância, os relatos das vítimas podem ajudar a sociedade, em geral, e a ciência, em especial, a aumentar o seu grau de consciência.
22. Muitas outras mulheres e homens serão incentivados por esses relatos a explorar a história da própria infância, perceberão sua importância e a relatarão por sua vez. Círculos cada vez mais vastos da população serão assim informados do que a maior parte dos seres teve que suportar no início da sua vida, sem saber, eles mesmos, em seguida, sem que ninguém soubesse - simplesmente porque não havia relatos, de pessoas implicadas, sem idealizações. Agora, temos testemunhos, e aparecerão cada vez mais relatos. As vítimas de ontem e de hoje são os informantes do amanhã.

Anexo Página 371
Alice Miller 1986
(Traduzido do alemão por Jeanne Etoré)
(Traduzido do francês por Mirian Giannella, 2010)

3 de mai. de 2010

Dizer a verdade às crianças

de Alice Miller
Tradução em francês de Pierre Vandevoorde (janeiro 2007)
Tradução em português de Mirian Giannella (maio 2010)

Tento às vezes imaginar como alguém, tendo crescido num planeta onde não vem à ideia de ninguém de bater numa criança, como poderia sentir as coisas. Um dia talvez, graças aos progressos da investigação espacial, poderemos viajar de planeta em planeta, e saber como seres com costumes completamente diferentes abordarão a nossa terra. O que passará na cabeça e coração de um deles quando vir humanos adultos e vigorosos lançar-se sobre pequenas crianças sem defesa e golpea-las num impulso de fúria?
É ainda corrente hoje crer que as crianças não têm sentimentos, e estar persuadido que o que se pode fazer-lhes sofrer não tem consequências, ou a rigor de menor importância que nos adultos, precisamente porque são “ainda crianças”. É assim que até recentemente, cirurgias em crianças sem anestesia ainda eram autorizadas. Mais ainda, circuncisão e excisão são consideradas em muitos países como costumes tradicionais legítimos, da mesma maneira que os ritos de iniciação sádicos.
Golpear adultos é tortura, golpear crianças é educação. Isto não seria suficiente para evidenciar claramente uma anomalia que perturba o cérebro da maior parte das pessoas, “uma lesão”, um buraco enorme no lugar onde deveria se encontrar o empatia, em especial PARA COM as CRIANÇAS? Esta observação é suficiente para provar a precisão da tese na qual o cérebro das crianças espancadas guarda sequelas, porque quase todos os adultos são insensíveis à violência que sofrem as crianças!
Já que as torturas que sofrem as crianças são rejeitadas e negadas por todo mundo, pode-se supor que este mecanismo (de proteção) é constitutivo da natureza humana, que poupa sofrimentos ao ser humano e teria, consequentemente, um papel positivo. Mas há pelo menos dois fatos que contradizem esta afirmação. Primeiro, é precisamente quando os maus tratos são negados que são transmitidos à geração seguinte, impedindo assim a interrupção da cadeia de violência, e em segundo lugar, é a recordação do que foi sofrido que permite o desaparecimento dos sintomas de doença.
Já foi estabelecido que colocar em palavras as agressões sofridas pela criança na presença de um testemunho que se compadece conduz ao desaparecimento dos sintomas físicos e psíquicos (como a depressão); este fato nos obriga a procurar outra forma de terapêutica, pois não é se fazendo de aliado da recusa que se encontra a via da liberação, mas confrontando-se à sua própria verdade com tudo que possa ter de doloroso.
No meu entender, as mesmas conclusões aplicam-se à terapia das crianças. Como a maior parte das pessoas, eu também, durante muito tempo estava convencida de que as crianças têm absolutamente necessidade de ilusão e de recalcamento para poder sobreviver, porque seria demasiado doloroso para elas se encontrar face à verdade. Mas, hoje, estou convencida de que o que vale para os adultos, vale para elas, também: aquele que conhece a verdade da sua história está protegido de doenças e perturbações de todas as ordens. Mas para isto, a ajuda de seus pais lhe é indispensável.
Hoje, muitas crianças apresentam problemas de comportamento, e as propostas terapêuticas são também numerosas. Infelizmente, repousam, em geral, sobre concepções pedagógicas nas quais seria possível e necessário inculcar adaptação e submissão à criança “difícil”. Trata-se da terapia comportamental mais ou menos bem sucedida, que consiste numa espécie de “reparação” da criança. Todas as alternativas tentam calar ou ignorar o fato de que cada criança com problemas exprime a história das violações a sua integridade, que começa muito cedo na sua vida, como mostra o meu trabalho de investigação (ver meu artigo de 2006 “a impotência das estatísticas”), (ainda não publicado em francês), entre zero e quatro anos, enquanto o cérebro está em formação. A maior parte do tempo, esta sua história fica recalcada.
No entanto, não se pode realmente ajudar um ser mortificado a tratar suas feridas se se recusa a olha-las de frente. Felizmente, as perspectivas de cura são melhores para um organismo jovem, o que é também verdade para o psiquismo. O primeiro passo a fazer seria, então, preparar-se para olhar as suas feridas, para leva-las a sério e deixar de nega-las. Isso não tem nada a ver com “reparar os problemas” da criança, trata-se pelo contrário de tratar das suas feridas pela empatia e informações justas e verdadeiras.
Para que a criança alcance seu pleno desenvolvimento emocional (sua maturidade verdadeira), ela precisa mais do que apenas a aprendizagem do comportamento adaptado à norma. Para que não ganhe mais atraso, depressão, nem distúrbios de alimentação, de modo que não caia também na droga, tem necessidade de ter acesso à sua história. Penso que com crianças maltratadas, os esforços educativos e terapêuticos bem intencionados estão condenados ao fracasso se a humilhação vivida nunca for evocada, em outros termos se a criança permanecer sozinha com o seu vivido. Para levantar o véu que pesa sobre este isolamento (a solidão face ao seu segredo), os pais deveriam ter a coragem de confessar o seu erro à criança. Isso alteraria completamente a situação. Durante uma discussão tranquila, poderiam, por exemplo, dizer-lhe:
“Nós te batemos quando era ainda pequeno, porque nós também fomos educados assim e pensávamos que era necessário. Mas agora, sabemos que nunca deveríamos ter nos autorizado a isso e pedimos desculpas pela humilhação que te fizemos sofrer e as dores que isto te causou, nunca mais o faremos. Lembre-nos esta promessa caso a esqueçamos”.
Há 17 países nos quais esta prática já caiu sob o golpe da lei, onde é simplesmente proibida. Durante as últimas décadas, cada vez mais pessoas de fato compreenderam que uma criança espancada vive no medo, cresce no temor permanente da próxima violência. Isto altera muitas de suas funções normais. Entre outras coisas, ela não será capaz de se defender se for atacada ou então o medo provocará uma reação violenta em retorno, fora de proporção. Uma criança que vive no medo pode dificilmente se concentrar nos seus deveres, tanto em casa como na escola. A sua atenção fica menos focada no que deveria saber e mais no comportamento dos professores ou pais, porque não sabe nunca quando a mão deles vai reagir. O comportamento dos adultos parece-lhe totalmente imprevisível, deve então estar constantemente em alerta. Perde a confiança nos pais que deveriam, como é o caso em todos os mamíferos, protege-la das agressões externas, e em nenhum caso ataca-la. Mas sem a confiança nos pais, a criança se sente muito desprotegida e isolada porque toda a sociedade está ao lado dos pais e não ao lado das crianças.
Estas informações não são para a criança revelações, pois seu corpo sabe tudo aquilo. Mas a coragem dos pais e a decisão de não mais fugir aos fatos terá, sem dúvida, um efeito benéfico, liberador e duradouro. E é um modelo de grande importância que é apresentado, não somente em palavras, mas numa atitude de coragem de ir fundo no que pensa, e também de respeito à verdade e à dignidade da criança, e não mais violência e falta de controle de si. Como a criança aprende com a atitude dos pais e não com as suas palavras, há apenas efeitos positivos a esperar de tal confissão. O segredo o qual a criança era a única portadora doravante foi nomeado e integrado na relação, que pode agora estabelecer-se com base no respeito mútuo e não no exercício autoritário do poder. As feridas caladas até então podem se curar porque não permanecem mais armazenadas no inconsciente. Quando crianças informadas tornam-se por sua vez pais, não correm mais o risco de reproduzir de maneira compulsiva o comportamento, às vezes, muito brutal ou perverso dos pais, não são empurrados para isso pelas suas feridas recalcadas. O arrependimento dos pais apaga as histórias trágicas e priva-as de seu potencial perigoso.
A criança espancada por seus pais aprende deles a reagir pela violência, isto é incontestável, e qualquer professor de maternal poderia confirmar se se autorizasse a ver o que lhe é dado a ver: A criança espancada em casa bate na mais fraca na escola assim como na família. E recebe uma punição quando bate no seu irmãozinho(a), e assim não compreende nada na marcha do mundo. Não foi o que aprendeu dos pais? É assim que nasce bem cedo uma desordem que se manifesta na forma de “perturbação”, e que leva a criança à terapia. Mas ninguém se arrisca a atacar as raízes deste mal, que, no entanto, é tão evidente.
A terapia pelo jogo com terapeutas dotados de forte sensibilidade pode certamente ajudar a criança a exprimir-se e ganhar confiança em si mesma num enquadre protegido e sempre o mesmo. Mas como o terapeuta faz silêncio sobre as primeiras feridas abertas no passado, a criança permanece, em geral, sozinha com o que viveu. Mesmo o mais dotado dos terapeutas não pode levantar este véu se a preocupação de proteger os pais o faz hesitar a levar plenamente em conta as feridas dos primeiros anos. Mas não cabe a ele falar com a criança, pois suscitaria imediatamente o medo de ser punida pelos pais. O terapeuta deve trabalhar com os pais sozinhos e deve lhes explicar em que o fato de falar poderia ser liberador para eles e para a criança.
Certamente, nem todos os pais vão aceitar esta proposta, ainda que lhes seja feita por terapeutas, o que seria evidentemente desejável. Alguns rirão sem dúvida desta ideia e dirão que o terapeuta é ingênuo e não sabe a que ponto as crianças são dissimuladas e procuram certamente explorar a bondade dos pais. Não é de surpreender tais reações, porque a maior parte dos pais vê nos filhos os seus próprios pais e têm medo de confessar um erro, pois antes pesadas punições o ameaçavam após os erros. Agarram-se à máscara da sua perfeição e é bem provável que sejam incapazes de se corrigir.
Quero contudo crer que todos os pais não são incorrigíveis torturadores. Penso que apesar deste medo, há muitos pais que gostariam de renunciar à esta relação de poder, que tinham há muito tempo vontade de ajudar seus filhos mas que até então não sabiam como fazer, porque sentiam medo da ideia de se abrir sinceramente à eles. É muito provável alguns pais chegarão mais facilmente a uma discussão honesta sobre “o segredo” e que é pela reação de seu filho que farão a experiência dos efeitos positivos da revelação da verdade. Constatarão, então, por si mesmos como os valores que pregam autoritariamente são inúteis se comparados à confissão sincera dos seus erros, condição indispensável para que o adulto se veja conferir a verdadeira autoridade, por ser credível. É evidente que qualquer criança tem necessidade de tal autoridade para encontrar o seu caminho no mundo. Uma criança a quem foi dita a verdade, que não foi educada para se acomodar com mentiras e atrocidades, pode desenvolver todas as potencialidades, como uma planta em boa terra cujas raízes não são presas de animais peçonhentos (as mentiras).
Tentei testar esta ideia com amigos, perguntei aos pais, mas também às crianças, o que pensavam. Constatei então que era mal compreendida, que os meus interlocutores interpretavam o meu propósito como se se tratasse de desculpar os pais. As crianças respondiam que era necessário ser capaz de perdoar os pais, etc.… Mas a minha ideia está longe disso. Se os pais se desculpam, as crianças podem ter o sentimento que se espera delas o perdão para descarregar os pais e libera-los de seus sentimentos de culpa. Seria pedir demais à criança.
Em contrapartida, o que tenho em mente, é uma informação que confirma o que a criança sabe na sua carne e confira um lugar central ao que viveu. É a criança que está em foco, com os seus sentimentos e as suas necessidades. Quando a criança observa que os pais se interessam pelo que ela sentiu nos momentos de exagero, ela vive um grande alívio ligado a uma sensação confusa de justiça… Não se trata aqui de perdão, mas da evacuação de segredos que separam. Trata-se de construir uma relação nova, fundada na confiança mútua, e de levantar o véu que isolava a criança espancada, até então.
Uma vez que do lado dos pais o reconhecimento da ferida tem lugar, muitas vias obstruídas liberam-se, num processo de cura espontâneo. É dos terapeutas que se espera tal resultado, mas sem o concurso dos pais não pode acontecer.
Quando os pais se dirigem à criança com carinho e respeito, e reconhecem sinceramente a sua falta, sem dizer: “foi você que me levou a fazer aquilo pelo teu comportamento“, muitas coisas se alteram. A criança recebe modelos que lhe permitem encontrar o seu caminho, não tenta mais evitar as realidades, o objetivo não é mais o de “reparar” de modo que agrade mais aos pais, mostra-se que se pode colocar a verdade em palavras e sentir a sua potência curativa. E, sobretudo: que ela não precisa mais se sentir culpada pelos erros dos pais já que eles reconhecem a sua culpa. Nos adultos, tais sentimentos de culpa estão geralmente na base de muitas depressões.

***
Embora, este texto trate das violências físicas como espancamentos, são muitos os casos em que a verdade dos abusos não é revelada, como se o pai tivesse todos os direitos sobre os filhos. Sem a nomeação do agressor a criança só pode ficar perdida. Pedir desculpas pelos exageros faz bem! Mirian

14 de abr. de 2010

ABUSO SEXUAL, CONSEQUÊNCIAS, COMO AJUDAR E O QUE NÃO DIZER AS VÍTIMAS

Compreender melhor o abuso sexual, suas consequências e como ajudar a vítima a sair da repetição.

Sair da repetição, da sideração, da dissociação, da paralisia.
De vítima à sujeito de direitos!

O artigo que segue foi inicialmente escrito por Jacques e Claire Poujol, conselheiros conjugais e familiares, traduzido por Mirian Giannella, para o uso de terapeutas, psis e conselheiros. Útil para todos os profissionais da ajuda (assistentes sociais, médicos, etc.) mas, também, para as próprias vítimas, este texto permite compreender melhor o abuso sexual, suas consequências e como ajudar a vítima a sair da repetição. [Eu, tradutora, Mirian Giannella, vou me inserir no texto entre chaves, para acrescentar.]
Que o saiba ou não, algum próximo seu já sofreu e se tornou vítima de abuso sexual. E se for um psi, perceberá logo que várias dificuldades de muitas pessoas encontram aí a sua origem. Para estes homens e estas mulheres mortificados, haverá sempre o “antes” e o “depois” do abuso.
A nossa sociedade prefere ignorar este problema, atenuar a gravidade ou negá-la totalmente. Ou então, cheia de boa vontade, mas também de incompetência, propõe-se às vítimas “soluções” que fazem apenas agravar o traumatismo sofrido.

Respondemos neste artigo às perguntas:
• O que se entende por abuso sexual?
• Por que a vítima tem tanta dificuldade para falar do que sofreu?
• Quais estragos o abuso sexual provoca?
• Como ajudar a vítima a sair da repetição?
• Quem são os abusadores?

O que se entende por abuso sexual?
1. Um constrangimento ou um contato
Um abuso sexual é qualquer constrangimento (verbal, visual ou psicológico) ou qualquer contato físico, por qualquer pessoa que se serve de uma criança, adolescente ou adulto, com o propósito de uma estimulação sexual, a deles ou a de uma terceira pessoa.
Contato físico é, certo, mais um grave que um constrangimento verbal. Mas é necessário saber que qualquer abuso constitui uma violação do caráter sagrado e da integridade da pessoa humana e provoca sempre um traumatismo.
O constrangimento verbal designa: uma solicitação sexual direta; o uso de termos sexuais; a sedução sutil; a insinuação. Tudo isto em relação a uma pessoa que não o deseja ouvir.
O constrangimento visual refere-se: ao emprego de material pornográfico; ao olhar que insiste sobre certas partes do corpo; ao fato de se despir, de se mostrar nu, ou de praticar o ato sexual à vista de alguém. Aqui também, sem que a pessoa o deseje.
O constrangimento psicológico designa: a violação da fronteira entre o relacional e o sexual (um interesse excessivo pela sexualidade de seu filho/a) ou entre o físico e o sexual (lavagens repetidas; um interesse muito marcado pelo desenvolvimento físico de um adolescente).
O contato físico pode ser: bastante grave (beijar, contato do corpo através das roupas, que seja pela força ou não, com ou sem pressão psicológica ou afetiva), grave (contato ou penetração manuais; simulação de relações sexuais, contato genital, com ou sem violência física), ou muito grave (violação genital, anal ou oral, obtida de qualquer maneira que seja, pela força ou não).
2. A estratégia do abusador
Um abuso não é o fato do acaso por parte de quem o comete. Sendo um perverso, este premedita e organiza a relação esperando o momento em que seus fantasmas viciosos lhe parecerão realizáveis. A vítima ignora naturalmente tudo isto.
A estratégia perversa comporta em geral quatro etapas:
a. O desenvolvimento da intimidade e do caráter confidencial, privilegiado, da relação. Esta fase, mais ou menos longa (de algumas horas ou anos), visa a colocar em confiança a futura vítima que não duvida de nada.
b. Uma interação verbal ou um contato físico aparentemente “adequado” com a pessoa que vai ser abusada (confidências de caráter sexual, carícias nos cabelos, abraços amigáveis). A pessoa não tem medo, por que: em 29% dos casos, seu futuro abusador é um membro da família, em 60% dos casos um familiar ou amigo. Apenas 11% dos abusos são cometidos por um desconhecido.
c. Uma interação sexual ou um contato sexual
É a fase do abuso propriamente dito. Aqui, a vítima reencontra-se na mesma situação que um coelho que atravessa uma estrada à noite e é capturado pelos faróis de um automóvel: petrificado, paralisado, siderado, incapaz de reagir, deixa-se esmagar pelo automóvel. O abusador está consciente do que faz com sua vítima.
d. A continuação do abuso e a obtenção do silêncio da vítima pela vergonha, culpa, ameaças ou privilégios. Este silêncio raramente é quebrado. O abuso permanece um segredo absoluto durante muito tempo, às vezes por toda a vida.
Três sobreviventes das irmãs Dionne, as famosas quíntuplas canadenses, esperaram os sessenta e um anos para revelar, na sua biografia, que tinham sido sexualmente agredidas pelo pai.
Guardando o silêncio, a vítima faz-se, contra a sua vontade, de cúmplice do abusador, uma vez que a única coisa que ele teme é de ser denunciado. O fato de tornar-se assim, bem involuntariamente, seu aliado, reforça o desprezo que tem por si própria e a sua culpabilidade.
Será uma das tarefas do psi explicar que uma pessoa sexualmente abusada não é nunca culpada nem responsável pelo abuso. Não podia adivinhar que as duas primeiras etapas eram apenas uma estratégia do abusador.
Deverá também dizer-lhe que uma pessoa que está sob a dominação de um abusador só faz parar os abusos com a denúncia e revelando o que sofreu. Ora, falar, para ela, é muito difícil, por várias razões.

Por que uma vítima tem tanta dificuldade em falar do que sofreu?
1. Leva, às vezes, muito tempo para realizar que foi abusada
O tempo não conta para o inconsciente, ele está como que parado para a vítima: é, na maioria das vezes, o aparecimento de sintomas como depressão ou perturbações sexuais que a levará a deixar o seu sofrimento emergir na superfície e aceitar falar. É o primeiro passo para a cura.
Mas falar deste traumatismo, tomar consciência desta verdade: “Fui abusada”, pode ser um choque terrível. O conselheiro terá necessidade de tato e de grande compaixão para deixar a pessoa descobrir por si mesma e no seu ritmo, a amplitude do drama que viveu. Compreenderá a extrema repugnância que provoca admitir que o seu corpo e a sua alma foram devastados. Gostaria tanto de esquecer, não ter nunca vivido aquilo, que vai se refugiar ocasionalmente na recusa: “Aquilo não pode ter me acontecido.”
A pessoa será incentivada a continuar a falar se acreditarem no que diz (tem absolutamente necessidade de sentir que acreditam nela) e se evitar certas frases destrutivas como:
• - Ele cometeu só um erro, como fazemos todos.
• - Aconteceu só uma vez, afinal.
• - É tempo de virar a página.
• - Já faz muito tempo que passou

2. Sente-se culpada
Em seu foro íntimo, sem mesmo declarar abertamente, a pessoa pensa:
• Sou também culpada? Senti prazer?
• Poderia ter evitado?
• Colocado na minha situação, um outro teria podido se opor, se debater, fugir?
O psi pode ir adiantando as perguntas que não ousa exprimir, dizendo:
• Quem detinha o poder (parental, espiritual, moral, organizacional, físico, psicológico)?
• Quem era o adulto? O marcador social? O referente?
• Quem era o instigador, o organizador dos abusos?
• Quem poderia fazer cessar?

Pode fazer-lhe compreender que a sua culpa está ligada à defasagem entre a vivência passada (e as razões pelas quais a vítima não pôde impedir: a sua tenra idade, sua ignorância, sua total confiança) e a sua vivência atual, quando já é mais velha, menos ignorante, menos ingênua e já sabe se proteger. Crê-se culpada porque olha os acontecimentos passados com os olhos do adulto prevenido que é hoje. Ora, na época, não possuía as defesas necessárias para impedir o abuso.

Separar-se do agressor
[É de fundamental importância sair da culpa, perceber que houve crime, invasão de privacidade, abandono e negligência, e aprender que os lugares já estão dados há milênios, no mundo desértico que eles criam, e aprender a se defender e se situar na sua história.]
Pode-se também ajuda-la a diferenciar o ponto fraco do qual se serviu o perverso, por exemplo, uma necessidade de ternura completamente legítima, uma confiança cega, e o crime que cometeu, se aproveitando desta necessidade legítima de afeição ou da confiança, para saciar seus desejos imorais.
Desligar estes dois elementos é frequentemente um momento de verdade e um alívio para a pessoa, que faz o seu segundo passo para a cura quando não se sente mais responsável. [Nomear o crime, o criminoso e a arma do crime tem o efeito de separar a vítima do agressor e fazer com que a vítima restaure a sua dignidade de pessoa humana. É verdadeiramente reparador!]
Mas o caminho será ainda longo até cicatrização da ferida. A precipitação e a impaciência são os grandes inimigos do conselheiro (e do cliente) neste domínio.

3. Falar pode custar-lhe caro
Cada vez que a pessoa abusada mergulha no horror do seu passado, deve pagar um preço muito elevado. Tentando “esquecer” o abuso, virar a página, tinha construído certo equilíbrio, por exemplo, com os seus parentes. Se decidir fazer explodir a verdade, vai desorganizar este equilíbrio fictício e suscitar pressões dos parentes. Encontra-se sempre falsos “bons conselheiros” preocupados mais com a própria tranquilidade e pelo que dirão, defensores dos abusadores, que vão acusá-la de mentir ou exagerar, de despertar o passado e incita-la-ão a esquecer, ou mesmo “a perdoar”; o cúmulo é que corre o risco até mesmo de ser responsabilizada pelo abuso.
[É tradicional a culpabilização das vítimas.]
O psi deverá, então, apoiar, incentivar e assegurar a sua proteção material e psicológica. Ajudá-la a avaliar o preço da luta que deverá efetuar para sair do lamaçal do abuso sexual e realizar que o seu desejo de sair do sofrimento será ainda negado por aqueles que deveriam mais protegê-la: a família ou os responsáveis pelas instituições. [Ou fazê-la militar na área para mudar as circunstâncias e fazer a sociedade agir pela proteção das crianças. Precisamos sim ficar mais ativos contra as indecências que trazemos de priscas eras animalescas. A criança deve ser respeitada na sua integridade física e moral.]
É necessário notar que quando o abusador faz parte de uma instituição, qualquer que seja, esta decide frequentemente, por medo do escândalo, “acobertá-lo” e, por conseguinte, permanecer na recusa do abuso, mais do que reconhecer publicamente a existência de um perverso sexual na instituição. [Mas, estamos vendo até o papa ser responsabilizado e muitos padres se demitindo e sendo processados. É um avanço do Estatuto da Criança e do Adolescente! Mas é verdade que a cultura é permissiva para com os crimes sexuais!]
Há um consenso social de reprovação à pessoa que tem a coragem de remexer nestas coisas imundas: que ela continue como morta viva, não é grave. O mais importante, é que se cale.

4. Sofre de vergonha
Sartre disse que a vergonha é “a hemorragia da alma”. Um abuso sexual marca a pessoa a ferro e fogo, a suja, a leva a esconder-se dos outros. A vergonha é uma mistura de medo da rejeição e cólera para com abusador, que não ousa se exprimir. [Sente-se culpada pelo crime até nomear o agressor e o crime e a arma do crime. (N. da T.)]
O sentimento justo que deveria provar é a cólera. Provar este sentimento liberador ajuda-a a sair da vergonha. É necessário, às vezes, tempo para que chegue a exprimir a sua indignação face à injustiça que sofreu. Esta expressão da cólera poderá fazer-se seja de maneira real, frente ao culpado, ou, se não for possível para a sua segurança pessoal, de maneira simbólica. Em todos os casos cabe à vítima decidir. A vergonha está ligada ao olhar que a vítima leva sobre si mesma; vê-se como suja por toda a vida. É o seu olhar sobre si mesma que deverá se alterar, e isto alterando a sua maneira de pensar.

5. O desprezo
Sentindo-se envergonhada, a pessoa abusada tem duas soluções: desprezar-se a si própria ou desprezar o abusador e os semelhantes. Nos dois casos, o resultado é o mesmo: autodestruição, porque o ódio de si ou o ódio do outro são ambos destrutivos.
O desprezo por si própria pode referir-se ao seu corpo, a sua sexualidade, a sua necessidade de amor, a sua pureza, a sua confiança.
Este desprezo de si tem quatro funções: atenua a sua vergonha, asfixia as suas aspirações à intimidade e à ternura (desprezar-se anestesia o desejo), dá-lhe a ilusão de dominar o seu sofrimento e evita-lhe que procure a cura do seu ser.
Quando o desprezo por si mesma é muito intenso, pode levar à bulimia, à violência contra si e ao suicídio; nestes três casos, a pessoa pune o seu próprio corpo porque ele existe e tem desejo.

6. O verdadeiro inimigo
Se perguntar a uma pessoa que sofreu um abuso sexual qual é o seu inimigo, responderá sem dúvida: “É o culpado do abuso.” O que lhe parece evidente.
A vítima tem escolha: ou combate, cultivando o seu ódio para com o abusador, ruminando uma vingança contra ele; ou foge, procurando esquecer, endurecendo-se para não mais sofrer, fechando-se em si mesma, passa a ser insensível, de maneira a não mais sentir nem emoção nem desejo.
Mas estas duas soluções são vãs, porque o inimigo não é o abusador. Certamente, representa um problema, mas a boa notícia é que não é o problema essencial. O verdadeiro adversário é a determinação da pessoa em permanecer no seu sofrimento, a sua morte espiritual e psíquica e a recusa a voltar a viver. O inimigo reside, por conseguinte, paradoxalmente, na própria vítima!
Este terceiro passo para a cura é sem dúvida o mais difícil de cruzar. A pessoa deve compreender que tem na frente dela a vida e a morte, e que pertence apenas à ela permanecer na morte ou escolher viver.
Quando o conselheiro sente que ela tomou a decisão de sair da pulsão de morte para entrar na pulsão de vida, terá então sem dúvida a ocasião de lhe falar dos três grandes estragos que o abuso produziu na sua vida e que deverão ser reparados.

7. O sentimento de impotência
O abuso sexual foi imposto à vítima. Que tenha se produzido uma vez ou cem vezes, com ou sem violência, não altera o fato de que foi privada da sua liberdade de escolha.

Os estragos produzidos pelo abuso sexual
Estes estragos constituem umas torrentes tumultuosas que devastam a alma, e que inclui: o sentimento de impotência, o de ter sido traída e o sentimento de ambivalência, bem como vários outros sintomas.

O sentimento de impotência
O abuso sexual foi imposto à vítima. Que tenha se produzido uma vez ou cem vezes, com ou sem violência, não altera em nada o fato de que foi privada da sua liberdade de escolha.
Este sentimento provem de três razões:
Não pôde alterar a sua família disfuncional, se se trata de um incesto. Os seus parentes não a protegeram como deveriam, a sua mãe ou a sua sogra nada viram ou fingiram nada ver.
Que o abuso foi acompanhado de violência ou não, que haja dor física ou não, a vítima não pôde escapar, o que cria nela fraqueza, solidão e desespero. Além disso, o culpado serve-se da ameaça ou da vergonha para reduzir ao silêncio e recomeçar em toda impunidade, o que aumenta a sua impotência.
Não chega a pôr um termo ao seu sofrimento presente. Só a decisão de suprimir-se anestesiaria a sua dor, mas não pode resolver-se, então continua a viver e a sofrer.
b. Este sentimento de impotência provoca graves prejuízos
A pessoa abusada perde a consideração por si própria, duvida dos seus talentos e crê-se medíocre.
Abandona qualquer esperança.
Insensibiliza a sua alma para não mais sentir a raiva, o sofrimento, o desejo ou a alegria. Esconde e repele no seu inconsciente as lembranças horríveis da agressão sexual.
Pela força de renunciar a sentir a dor, torna-se como morta. Perde o sentimento de existir, parece estrangeira a sua alma e a sua história.
Perde o discernimento relativo às relações humanas, o que explica que as vítimas de abusos recaem constantemente nas garras de perversos, o que reforça o seu sentimento de impotência.

2. O sentimento de ter sido traída
Muitas pessoas ignoram o nome dos onze outros apóstolos, mas conhecem Judas, o traidor. Por quê? Porque a maior parte das pessoas considera que nada é mais odioso do que ser traído por alguém que se supunha amigo e respeitoso.
A pessoa abusada sente-se traída não somente pelo abusador em quem tinha confiança, mas também pelos que, por negligência ou cumplicidade, não intervieram para fazer cessar o abuso.
As consequências da traição são: uma extrema desconfiança e a suspeita, sobretudo em relação às pessoas mais amáveis; a perda da esperança de ser próxima e íntima de outro e de ser protegida no futuro, visto que os que tinham o poder não o fizeram; a impressão que se foi traída, foi porque mereceu, devido a uma falha no seu corpo ou no seu caráter.

3. O sentimento de ambivalência
Consiste em sentir duas emoções contraditórias ao mesmo tempo. Aqui, a ambivalência gravita ao redor dos sentimentos negativos (vergonha, sofrimento, impotência) que simultaneamente, às vezes, foram acompanhados de prazer, que seja relacional (um cumprimento), sensual (uma carícia), ou sexual (tocar nos órgãos), nas primeiras fases do abuso.
O fato que o prazer, às vezes, seja associado ao sofrimento provoca prejuízos consideráveis: a pessoa sente-se responsável por ter sido abusada, já que “houve” prazer; a lembrança da agressão pode retornar nas relações conjugais; não chega a desabrochar-se na sua sexualidade que é para ela demasiado ligada à perversidade do abusador; controla e mesmo proíbe-se o prazer e, por conseguinte, o seu desejo sexual.
O conselheiro deve explicar à pessoa que não é responsável por ter sentido prazer, porque é normal que apreciou as palavras e os gestos “de ternura” do abusador. É a natureza que deu ao ser humano esta capacidade de sentir prazer.
O que não é normal é a perversão dos que premeditaram estas atitudes afetuosas para fazer cair uma presa inocente na sua armadilha. É ele o único responsável.

4. Alguns outros sintomas
Pensa-se em eventual abuso sexual se o cliente:
- Sofre de depressões repetidas.
- Apresenta perturbações sexuais: falta de desejo, asco, frigidez, impotência, temor ou desprezo pelos homens ou mulheres, medo de casar-se, masturbação compulsiva. Na criança, esta perturbação do autoerotismo, assim como algumas enureses, podem fazer pensar em abuso sexual.
- Destrói-se pelo uso abusivo de álcool, de droga ou de alimento. A obesidade, em especial, permite às jovens ou mulheres que foram violadas se tornar, inconscientemente, menos atrativas e se proteger assim contra outra agressão.
- Sofre de dores de barriga, de infecções ginecológicas repetidas.
- Um estilo de relação com os outros muito caraterístico: ou é demasiado agradável com todos, ou é inflexível e arrogante, ou por último é superficial e inconstante.

Ajudar a vítima a voltar à viver
Esta deverá cessar de ouvir as vozes internas que a mantém na culpabilidade e vergonha e se pôr à escuta da voz da verdade, que a conduzirá para a libertação.
Deverá também abandonar as vias sem saídas que pessoas bem intencionadas, mas incompetentes (das que ajudam “pouco ajudadas”!) lhe propõem: negar o abuso, minimizá-lo, para esquecer, para perdoar o culpado sem que este se arrependa seriamente, para virar a página, para parar de reclamar, etc.
A via que leva ao bem-estar compreende duas etapas: olhar a realidade de frente, e decidir viver.
1. Olhar a realidade de frente
A pessoa deverá reencontrar as lembranças do abuso, admitir os estragos e gradualmente sentir os sentimentos adequados. [Momento de turbilhão, difícil sentir sentimentos adequados, realizar o abuso que não se tinha noção de que era crime, uma violação da integridade física e psíquica de indefeso, covardia imensa! Há um medo da vingança. Mas a vingança é a denúncia. E sem denúncia não se separa da culpa, que deve recair sobre o criminoso. Sem criminoso, a vítima fica identificada com o agressor se auto-agredindo si mesma. Por isto é tão importante denunciar. Sem nomear o crime, o criminoso e a arma do crime, a vítima continua vítima. E O Pacto do Silêncio e da desautorização e exclusão da vítima como louca reina absoluto e ela não recebe nada, dela só lhe é tirado, não recebe a transmissão de como se defender e defender os seus direitos. Há laissez-faire, cumplicidade, impotência, anuência, complacência... ]

a. Reencontrar as lembranças do abuso
A vítima preferiria esquecer, tanto a enoja ou a terrifica. Ou então, fala friamente como se fosse de uma outra pessoa que se trata. Mas, esta recusa é um obstáculo à cura. O abuso não deve ser apagado, mas nomeado. Assim, com muito tato, incentivar a lembrar do passado, às vezes muito remoto, porque só um abcesso esvaziado pode cicatrizar. O retorno das lembranças repelidas vai se fazer progressivamente durante a psicoterapia. O inconsciente da pessoa colabora ativamente por meio de sonhos, ou imagens que lhe vem ao espírito. Certos acontecimentos fazem também reaparecer os traumatismos esquecidos, por exemplo: um encontro com o abusador, uma gravidez, a menopausa, um outro abuso, o fato de que um de seus filhos atinja a idade que tinha quando foi abusada, o fato de reencontrar-se nos lugares da agressão, ou o falecimento do culpado.

b. Admitir os estragos
Este regresso penoso no passado vai permitir-lhe admitir as duras verdades seguintes:
• Fui vítima de um ou vários abusos sexuais. É um crime contra o meu corpo e contra a minha alma.
• Sendo vítima, não sou responsável deste crime, que só pude sentir.
• Em consequência destes abusos, sofro de sentimentos de impotência, de traição e de ambivalência.
• O meu sofrimento é intenso, mas a cicatrização é possível, se admitir que houve ferida.
Esta cicatrização levará tempo.
• Não devo envolver o meu passado com um véu de segredo e de vergonha; mas também não sou obrigada a falar a qualquer um.
c. Sentir os sentimentos adequados [eu aprendi que sentir é uma grande coisa, mas não é tudo. Pois a gente não se vê, só se sente. E para se ver é preciso se colocar no lugar do outro, do abusador no caso, o que causa repulsa, por se ter que realizar o gesto do abusador. Mas é a maneira de entender o crime que aconteceu. Assim, passa pelo olhar do outro e deste nos tornamos tão dependentes. O que segue também acho muita precipitação, mas ouvi Gikovate dizer: A maturidade chega quando a gente pode olhar pro mundo e dizer: Que pena que o mundo é assim...!]
A culpabilidade (que é um sentimento de extorsão muito frequente), a vergonha, o desprezo, a impotência, o ódio, o desespero, pela sua própria expressão vão sendo gradualmente substituídos por sentimentos mais amenos que são como a cólera para com abusador e os seus cúmplices, e a tristeza face aos estragos sofridos. Esta tristeza não deve levar à morte, ao desespero, mas à vida, ou seja a uma fé, uma esperança e um amor renovados.
O conselheiro favorecerá a expressão destes dois sentimentos, de maneira real ou simbólica, mas sempre em toda segurança, no quadro protegido das sessões de relação de ajuda.

2. Decidir voltar à vida
Por que uma vítima de abuso sexual deveria decidir voltar a viver, depois de tudo o que sofreu e sofre ainda? Simplesmente porque é melhor para ela escolher a vida e não a morte.
Escolher viver significará para ela:
a. Recusar estar morta
A vítima acha normal viver com um corpo e alma mortos; paradoxalmente, isto lhe permite sobreviver não se arriscando mais a sentir alegria ou dor.
b. Recusar desconfiar
A vítima desconfia dos seres humanos. Uma mulher violada, em especial, vê todo “macho” como “o mal”. Deverá aprender a transformar a sua desconfiança para com os homens em vigilância, o que é muito diferente.
c. Não mais temer o prazer e a paixão
Estes dois elementos a reenviam ao drama que sofreu, então ela foge. Ao faze-lo, priva-se destes dois dons. Sendo vítima do desejo (perverso, mas desejo do mesmo modo) de alguém, “lança o bebê com a água do banho”, ou seja rejeitando o abuso que sofreu, rejeita ao mesmo tempo qualquer desejo, até mesmo o seu. Deve realizar que não é porque alguém teve um desejo perverso para com ela que deve doravante renunciar ao seu próprio desejo.
d. Ousar amar de novo
Deverá progressivamente renunciar às suas atitudes autoprotetoras e o seu fechamento em si mesma para provar de novo a alegria de amar os outros e de estabelecer relações calorosas e seguras.
Deixará a sua carapaça para reencontrar um coração terno, capaz de correr o risco de amar aqueles que encontra. Abandonará as suas defesas, o que não quer dizer que não se cercará de proteções. Uma proteção não é uma defesa.
Descobrirá que, se é verdade que uma ou várias pessoas a traíram, a grande maioria é digna de confiança.

A revelação do abusador
1. Quem são?
Na sua grande maioria são jovens pessoas ou homens provindos de todas as classes da sociedade e de todos os meios. Na maior parte das vezes, fazem parte do ambiente da vítima: um colega, um vizinho, um chefe escoteiro ou um animador de jovens, uma babá, um professor, um patrão, um colega de trabalho, um padre, etc.
Muito frequentemente são também membros da família: o pai, o tio, o avô, o sogro (cada vez mais frequentemente devido ao aumento dos rematrimônios e das famílias expandidas), o irmão, o meio-irmão ou o quase irmão, o cunhado, o primo, etc. fala-se então de incesto ou abuso sexual intrafamiliar.
Trata-se, mais raramente, de uma pessoa desconhecida da vítima.
É necessário notar que 80% dos agressores foram eles mesmos vítimas de abusos no passado, o que não o desculpa de modo algum, mas pode explicar em parte o seu comportamento.

2. A Revelação
Uma vítima tem muita dificuldade para denunciar o seu agressor; revelará mais facilmente o abuso em si. No entanto, esta denúncia tem um grande alcance terapêutico e é necessário incentivar a quebrar o silêncio. Uma vez dito à outro, a palavra torna-se inter-dita e não mais interditada, como queria o perverso. Mas esta denúncia frequentemente é mal recebida pela sociedade. Enquanto uma pessoa sexualmente abusada não denunciar o culpado, é considerada como vítima. Mas o dia em que decide se referir à Justiça, consideram-na então como culpada de acusar alguém, e o crime cometido para com ela vai ser negado.
É por isso que, por exemplo, a grande maioria das mulheres violadas, se resignam a permanecer vítimas por toda a vida e, por conseguinte, a calar-se por medo de ser acusada do crime que denuncia. Ora, nunca deveriam hesitar a devolver o peso do crime à quem pertence: ao violador.
É necessário, no entanto, saber que, se denunciar tem um efeito terapêutico, o processo judicial é longo, penoso e dispendioso. Os interrogatórios repetidos, a falta de respeito e tato de certas pessoas, a vergonha de revelar a sua história na frente de todos, a impressão de não lhe darem crédito, provocam o que se chama de vitimização secundária. Cada vez que relata a violação, a mulher se sente de novo violada.
O apoio, material e psicológico, de organismos especializados na ajuda às vítimas de abusos sexuais, é precioso neste tipo de diligência, tanto mais que o julgamento pronunciado do culpado, na maioria das vezes clemente, parece decepcionante e injusto à vítima e reaviva a sua dor.
Se tiver o conhecimento de um caso de abuso sexual, a primeira coisa a fazer é afastar a vítima do agressor, a fim de evitar que este último recomece.
No caso específico de abuso sexual sobre menor, a segunda diligência é informar as autoridades competentes (serviços sociais e Conselho Tutelar).
A lei obriga a esta revelação, e deve-se, neste caso, quebrar o segredo profissional, senão se corre o risco de ser considerada pela lei como cúmplice. Esta denúncia visa proteger a vítima e outras vítimas potenciais, e a obrigar o culpado a parar as suas atuações.

As reações do abusador a sua revelação
Um recente Colóquio europeu sobre as violências sexuais estabeleceu que 82% dos abusadores não admitem a sua responsabilidade (53% negam totalmente os fatos). Só 18% dentre eles admitem os fatos, e ainda porque são obrigados após confrontação com as vítimas, e não sem a acusar de “tê-lo provocado”.
Esta negação dos fatos permite-lhes perseverar na sua perversão, e por conseguinte, não se privar do seu gozo, que só conta para eles.
Quando não podem mais negar os fatos, admitem-no minimizando ou negando as consequências desastrosas sobre as vítimas, sobretudo se o abuso for isento de violência física. Se tiverem remorso ou se lamentarem, nunca será por seus crimes, mas por ter-se feito denunciar e pelo dever de parar.
Se o psi mostrar-se indulgente para com um perverso, porque deseja regrar rapidamente uma situação que o excede ou desagrada, corre o risco de ser manipulado pelo abusador que fará prova de “se arrepender” para continuar em paz as suas atividades viciosas escondidas. Faz-se assim de seu cúmplice, o que é grave.
Uma reação possível do culpado de abusos é a seguinte: ele suja e se alia. Suja as vítimas ou outras pessoas inocentes acusando-as do mal que ele mesmo comete; ao fazê-lo alivia, assim, a sua culpa. Além disso, alia-se com os que podem se tornar seus aliados e seus defensores (um pai incestuoso alia-se a sua mulher de modo que o deixe abusar da sua filha).
Um perverso que é revelado e que recusa se arrepender pode cair no pânico, na depressão, no álcool ou no suicídio; mais frequentemente endurece-se e continua de maneira mais intensa as suas práticas.
É extremamente raro que um delinquente sexual arrependa-se realmente, (no máximo exprimirá vagas “lamúrias”), mas é necessário sempre dar-lhe a ocasião.

Em conclusão, todo terapeuta deveria se dedicar a formar-se neste domínio tão específico se quiser se ocupar de pessoas que sofreram deste drama que constitui o abuso sexual. [Ou qualquer crime violento contra a sua integridade física e psíquica]

Fonte: Claire et Jacques Poujol - www.relation-aide.com
Tradução: Mirian Giannella – http://apoioasvitimas.blogspot.com

8 de abr. de 2010

Psicologia das vítimas

Não há psicologia da vítima de incesto. A Europa e, particularmente a França, permaneceram nos anos 70 com as afirmações dogmáticas da psicanálise que atribui os testemunhos de agressões incestuosas a um desejo inconsciente. Hoje ainda, ouço dizer, numa clínica que acolhe anoréxicas, sobre aquelas que afirmam ter sido vítimas de incesto: “É um meio, para elas, de se tornar interessantes!”
Tampouco há psicologia do predador familiar.
Além do SAP (Síndrome da Alienação Parental) que justifica numerosos desvios, há este novo “conceito” das falsas alegações que permite, em numerosos casos classificar um caso assinalado e entregar de volta a vítima às suas caras mentiras.
Ora, é relativamente fácil que um clínico formado revele falsas as alegações quando existem. No entanto, pode-se distinguir, graças a uma entrevista exaustiva se a pessoa foi vítima de violencia durante a infância. Mas, poucos psis são formados nisto, sem falar “dos peritos” que expedem o caso em duas ou três horas e assinam um relatório “incontestável” o qual o juiz seguirá as conclusões. Percebe-se por conseguinte, em todos os níveis, as inércias de um sistema de recusa:
- o juiz, por preguiça não irá procurar um perito formado;
- o psi (quiatra ou cólogo) que tem seus dogmas;
- os advogados que frequentemente são inibidos e relativamente passivos;
- globalmente um público que negligencia largamente a importância destes assuntos;
- o sistema de ajuda médico e social que nunca calculou o custo social das sequelas de traumas sofridos na infância;
- um sistema moral que repousa ainda sobre a supremacia do macho.

Illel Kieser
Tradução Mirian Giannella

Memória Traumática e Vitimologia, Dra. Muriel Salmona, trad. Mirian Giannella

VIOLÊNCIA E VITIMOLOGIA

Lutar contra a violência passa, antes de tudo, pela proteção às vítimas!

As violências são uma infração grave aos direitos humanos fundamentais das pessoas e à sua integridade física e psíquica. Como se produzem essencialmente em meios que se supõe serem mais protetores como a família, o casal, as instituições de educação e de cuidados, o mundo do trabalho, são ocultas e maquiadas como amor, desejo, educação, segurança, rentabilidade. Este ocultamento tem por função proteger o mito de uma sociedade patriarcal ideal onde os mais fortes protegeriam os mais fracos, racionalizando assim as desigualdades e os privilégios de uma posição dominadora, que torna as violências possíveis. As vítimas que as sofrem ficam isoladas, condenadas ao silêncio na impotência são confrontadas à violências ainda mais traumatizantes tanto mais quanto são inconcebíveis. Estas violências que traumatizam são a causa de feridas psíquicas e de perturbações psicotraumáticas freqüentes e crônicas que terão um impacto catastrófico sobre a sua vida se não forem tratadas. Ora, estas vítimas traumatizadas são abandonadas, não beneficiam nem de proteção, nem de cuidados específicos, lhes resta sobreviver num grande sofrimento e numa insegurança total e de reparar-se como podem. E estas condutas de sobrevivência, fora da norma, para a maior parte das vítimas serão estigmatizadas injustamente como deficiências constitucionais e serão percebidas como uma inferioridade que justificaria a destituição e novas violências, enquanto são reações normais às situações violentas anormais que sofreram. Em contrapartida, um baixo número de outras vítimas reparar-se-á aderindo à lei do mais forte e reproduzindo as violências, alimentando a produção de novas violências num processo sem fim.
Estas conseqüências psicotraumáticas explicam-se por mecanismos neurobiológicos conhecidos há apenas poucos anos e é, perfeitamente, possível preveni-los ou trata-los eficazmente.
A memória traumática das violências é o sintoma central das perturbações psicossomáticas. É produzida quando mecanismos psíquicos e neurobiológicos de salvaguarda excepcionais se instalam para escapar ao risco vital que gera o estresse extremo desencadeado por violências traumatizantes. Com efeito, estas violências incompreensíveis e inconcebíveis provocam dissociação e sideração psíquicos, sem poder controlar a atividade da estrutura subcortical responsável pela resposta emocional, a amígdala cerebral, e nem a secreção hormonal de cortisol e de adrenalina que desencadeia. Ora, a quantidade crescente segregada destes hormônios constitui um risco vital cardiovascular e neurológico para o organismo. Face a este risco, o cérebro segrega, por sua vez, em urgência, drogas “duras” (morphine-like e kétamine-like) que fazem corte na emoção, desconectando a amígdala de outras estruturas, como o hipotálamo, produzindo uma dissociação. A resposta emocional apaga-se brutalmente e as vítimas dissociadas descrevem então um sentimento de irrealidade, ou mesmo de indiferença e de insensibilidade, como se tivessem se tornado simples espectadores da situação devido à anestesia emocional e física ligada à disjunção. A consequência imediata é que a memória emocional do acontecimento não poderá ser codificada pelo hipocampo nem se tornar uma lembrança autobiográfica “que se possa narrar”. Permanecerá presa na amígdala, condenada a permanecer inacessível à consciência, mas susceptível de reacender-se a partir de qualquer estimulação que recorde as violências sofridas, e fazendo, então, viver à vítima os mesmos sofrimentos físicos e psíquicos. A memória traumática é esta memória enquistada, semelhante à uma máquina do tempo que ameaça engrenar à qualquer momento de maneira incontrolável, mergulhando de novo a vítima em meio às violências sofridas e reproduzindo a totalidade ou parte da sua vivência sensorial e emocional. E esta memória traumática, que ameaça incessantemente explodir, transforma a vida das vítimas num terreno minado, gerando um clima de perigo e de insegurança permanentes.
Inicialmente as vítimas tentam impedir a explosão evitando todos os estímulos suscetíveis de desencadea-la. Tornam-se hipervigilantes e instalam condutas de controle e evitamento de todo o seu ambiente, tudo o que pode recordar, mesmo inconscientemente, as violências como estresse, emoções, dores, situações imprevistas ou desconhecidas… mas também, um contexto, um odor, uma voz. O que provoca fobias, retração afetiva, perturbações do sono, cansaço crônico, perturbações da atenção e da concentração muito prejudiciais para levar bem uma vida pessoal, social e profissional.
Mas, as condutas de controle e de evitamento são raramente suficientes, particularmente, durante os períodos de grandes mudanças (adolescência, encontro apaixonado, nascimento de uma criança, vida profissional, desemprego, etc.) e a memória traumática explode então, frequentemente, traumatizando de novo as vítimas, provocando risco vital, disjunção, anestesia emocional e nova memória traumática. Mas, rapidamente a disjunção espontânea não pode mais se fazer porque um fenômeno de tolerância às drogas duras segregadas pelo cérebro instala-se, à quantidade igual das drogas não fazem mais efeito, as vítimas permanecem, então, bloqueadas numa aflição e numa sensação de morte iminente intolerável. É então necessário cessar este estado e se anestesiar por fim, obter custe o que custar uma disjunção fazendo aumentar a quantidade de drogas que dissociam.
O que se pode obter de duas maneiras: acrescentando-lhes drogas exógenas - álcool ou substâncias psicoativas - que são elas, também, dissociativas, ou aumentando sua secreção endógena por agravamento do estresse. Para agravar o estresse, as vítimas põem-se em perigo ou exercem violências geralmente contra si mesmas, mas muitas delas preferirão exercer violências contra o outro, gerando uma memória traumática em novas vítimas, o que é um elemento muito importante sobre o qual retornaremos. Estas condutas de risco, condutas violentas e condutas aditivas cujas vítimas descobrem cedo ou tarde a eficácia sem compreender os mecanismos, nomeei-as condutas dissociantes. Estas condutas provocam a disjunção e a anestesia emocional procuradas, mas recarregam também a memória traumática, tornando-a sempre mais explosiva e tornando as condutas dissociantes sempre mais necessárias, criando uma verdadeira adição às condutas de risco e/ou violência. [Tudo isto tenta justificar a repetição da conduta violenta para a dissociação e anestesia emocional quando o fato é que o trauma se repete pois é o registro das percepções e reações gravado constituindo um modo de funcionamento] (N. da T.)
Estes mecanismos psicotraumáticos permitem compreender as condutas paradoxais das vítimas e o ciclo infernal das violências. São ignoradas infelizmente e os médicos que não são formados em psicotraumatologia não vão ligar os sintomas e as perturbações das condutas que apresentam as vítimas às violências que sofreram e, por conseguinte, não vão trata-las especificamente. Vão utilizar tratamentos sintomáticos ou tratamentos que tem efeito dissociante, mas sem o saber. Estes tratamentos (como a internação, a contenção, camisolas químicas, isolamento, choques elétricos, ou mesmo a lobotomia que ainda é utilizada em certos países….) são “eficazes” para fazer desaparecer os sintomas mais embaraçosos, por anestesiar as dores e as aflições mais graves, mas agravam a memória traumática dos doentes. A violência tem a triste capacidade de tratar de maneira transitória, mas muito eficaz as consequências psicotraumáticas, agravando-as. É a sua própria causa e o seu próprio antídoto. Mas a que preço!
Se a violência é paralisante e dissociante para a vítima, para o autor é um instrumento de dominação e uma droga que anestesia. A violência é um formidável instrumento para submeter e instrumentalizar as vítimas no objetivo de obter uma anestesia emocional do agressor. Torna-se assim uma fábrica de novas vítimas e novas violências.
As racionalizações habituais para justificar a violência são apenas astúcias: A violência não é uma fatalidade, não procede de um impulso agressivo original no homem (como diz Freud), nem de uma crueldade inata (como pensa Nietzsche). O ser humano é naturalmente empático como o provam todos os estudos feitos com bebês. Os que utilizam a violência preconizam o despeito e o ódio às vítimas consideradas como inferiores e sem valor, mas são violentos por terem eles mesmos sido vítimas no passado. Têm recurso à violência apenas porque é útil, possível e que é uma droga para eles.
A vítima não é responsável pela violência exercida contra ela, nada na sua pessoa nem nos seus atos a justifica, a vítima é sempre inocente da violência premeditada que se abate sobre ela. De fato, a vítima é permutável e escolhida, por constrangimento ou manipulação, para representar um papel num roteiro que não lhe concerne, montado pelo agressor.
A violência não é útil para a vítima, o “é para o teu bem” denunciado por Alice Miller, o “é por amor a você”, o “é para melhor protege-lo, educa-lo, trata-lo…” são mistificações. A violência é útil apenas ao seu autor, para alivia-lo e apenas a ele, e para paralisar e submeter as vítimas. O objetivo deste último é impor à pessoa que escolheu para ser seu “escravo-curativo e medicamento” para tratar a sua memória traumática. Instrumentaliza a vítima e aliena-a privando-a de seus direitos a fim de transforma-la em escravo submisso e que deverá desenvolver condutas de controle e de evitamento em seu lugar, para evitar a explosão da sua memória traumática, e será quem, se a explosão acontecer, deverá servir de fusível, de modo que ele possa dissociar por procuração e se anestesiar.
A violência é um privilégio, é o privilégio de uma sociedade desigual que distribui papéis de dominador e dominado e que atribui, a cada um, um valor em função do lugar que ocupa no sistema hierárquico imposto. Este sistema injusto permite a destituição de uma parte da população em benefício de privilegiados que têm o direito de utilizar a violência injustamente para submete-la e instrumentaliza-la.

A função principal da violência é, por conseguinte, enganosa, permite aos agressores apagar os vestígios da vítima que foram e escapar à uma memória traumática incomoda. Permite-lhes colocar-se ao lado dos dominadores privilegiados e assegurar-se uma total impunidade dissociando as vítimas, que, anestesiadas, calar-se-ão, o que terá por efeito apagar os vestígios das violências que semeiam ao longo de seu caminho. A vítima que odeiam são eles mesmos, vão faze-la desaparecer atacando-se à outra vítima à quem farão representar à força a sua história para melhor nega-la, desencadeando a sua própria anestesia emocional. Uma vez que não sentem mais nada, é que esta história não é a deles.
Neste sistema, a vítima tem uma posição paradoxal. É, primeiro, uma vítima substituível, indispensável para fazer funcionar a máquina de apagar o passado traumático dos agressores. Mas como ela é suscetível de recordar o passado traumático de todos os que estão em posição dominadora despertando sua memória traumática, ela pode pôr em risco toda a construção ilusionista da sociedade e é necessário apaga-la a qualquer custo. A vítima é, portanto, ao mesmo tempo, indispensável e indesejável. As vítimas devem ser erradicadas, mas será necessário criar incessantemente novas vítimas. Uma vez que foram vítimas, serão levadas a se esconder ou desaparecer se auto-destruindo, a menos que se tornem, por sua vez, agressores, quando a sociedade lhes dá a possibilidade e quando se autorizam, ou seja quando um lugar de dominador lhes é reservado. É por isso que não têm o direito de afirmar o seu estatuto de vítima, ao fazer serão imediatamente suspeitas de não dizer a verdade ou procurar vantagens.
Quando os agressores tiverem necessidade de vítimas para se anestesiar, vão selecionar entre as vítimas escondidas ou pessoas ainda não vítimas, mas vulneráveis (como as crianças) para fazer-lhes participar do seu jogo, cabe às vítimas se submeter e depois, de novo, se esconder ou desaparecer sem deixar vestígios. É, então, essencial para os agressores em busca de vítimas potenciais cultivar situações de discriminação ou cria-las com todas as peças, decidir que certas categorias de humanos são “inferiores” e são, por conseguinte, utilizáveis como vítimas “fusíveis”: crianças, mulheres, deficientes, velhos, judeus, árabes, negros, etc.… à revelia de toda coerência e justiça, de toda a decência e sem ter que prestar contas, visto que se trata - uma vez etiquetadas inferiores - de pessoas permutáveis que “não valem nada ou não muito”, se não for por sua virtude “curativa” mais ou menos importante.
Áreas inteiras de funcionamentos humanos fundamentais são assim instrumentalizadas para servir de “instrumentos de violências”, como a educação das crianças, o amor parental, a relação conjugal, a sexualidade, a religião, o trabalho, a política, o cuidado. Algumas destas áreas são quase inteiramente pervertidas pelas condutas violentas que dissociam, a tal ponto e há tanto tempo que todos acabam por considerar que esta violência é “natural”, e inerente a estes funcionamentos humanos, com uma tolerância inconcebível para violências que embora ultrajem os direitos humanos, podem se impor como incontornáveis; é o caso das violências educativas intrafamiliares, e as violências sexuais, particularmente a prostituição e a pornografia. [Acrescento o incesto e a pedofilia.] (N. da T.)

A loucura imposta
As violências impregnam de tal maneira e há tanto tempo as relações humanas que alteraram as normas e as representações que se pode ter. As violências saturam e desnaturam a relação amorosa, a parentalidade, a sexualidade, o trabalho, os cuidados, etc. Na nossa sociedade, os sintomas psicotraumáticos e as perturbações das condutas nunca são reconhecidas como consequências normais das violências, mas percebidas de maneira mistificadora e particularmente injusta como provindas das vítimas elas mesmas, ligadas à sua personalidade, à supostos defeitos e incapacidades, ao seu sexo, à sua idade, ou mesmo perturbações mentais abusivamente diagnosticadas como psicóticas.
As violências e as suas consequências psicotraumáticas são a causa de muitos estereótipos supostos caracterizar as vítimas vulneráveis, como as mulheres e as crianças. Os seus sintomas, ao invés de serem identificados como reativos, são considerados injustamente como naturais e constitutivos de seu caráter, de suas condutas e de sua sexualidade: as mulheres seriam mais passivas, mais emotivas, mais sensíveis, mais frágeis e mais depressivas que os homens, com uma sexualidade bem menos pulsional que eles, os adolescentes seriam mais propensos às condutas de risco, mais suicidas, etc. certamente, existe numerosos estereótipos “em espelho” sobre os homens que seriam “naturalmente” predadores, dominadores e pouco emotivos.
Estes estereótipos, parasitados pela violência onipresente, alteram profundamente as relações humanas e transformam o amor numa relação de possessão e de influência, a educação em treinamento e dominação, a sexualidade numa necessidade de instrumentalizar e consumir.
E num mundo onde de maneira ilegítima e absurda, a metade da população, por ter nascido de sexo feminino, sofre uma dominação de fato, os discursos desiguais poderão continuar a mistificar uma grande parte dos indivíduos e impor mentiras ideológicas que são facilitadoras de violências, “permissão para matar” oferecida à pessoas de ética e coerência intelectual duvidosas para “tratar” a sua memória traumática às expensas do outro.

A memória traumática quando não tratada é, então, o denominador comum de todas as violências, e é a consequência assim como a causa.
Resulta claramente do que precede que para interromper a produção sem fim de violência é necessário evitar que vítimas sejam traumatizadas e que desenvolvam uma memória traumática. Isto passa por uma proteção sem falha de qualquer ser humano de modo que não sofra violências, e mais particularmente, crianças e mulheres que são as vítimas mais frequentes. É necessário, então, proteger as vítimas potenciais que vivem os universos infelizmente conhecidos como mais perigosos, como o casal, a família, as instituições, o trabalho, e é necessário promover uma igualdade efetiva de direitos, a informação sobre as consequências da violência e a educação da não-violência. É necessário também proteger as vítimas traumatizadas e não as abandonar ao seu destino. Nenhuma vítima deve ser deixada sem atendimento e cuidado.

Tratamento do Agressor
Tornar a justiça acessível a toda vítima é imperativo absoluto e os autores de violências devem prestar contas. Mas isto não é suficiente, é necessário que os autores de violências sejam tratados a partir das primeiras violências, no âmbito de uma educação da não-violência com cuidados especializados para tratar a sua memória traumática e a sua adição à violência.
O tratamento da memória traumática consiste em fazer compreender os mecanismos psicotraumáticos, com o objetivo de compreender e se desculpabilisar e de evitar condutas dissociantes e fazer de modo que os doentes não se deixem mais petrificar pela falta de sentido absurdo das violências. O tratamento consiste em identificar, com o doente, a sua memória traumática que toma a forma de verdadeiras minas as quais se trata de localizar, e em seguida desativar e desminar pacientemente, restabelecendo conexões neurológicas, permitindo-lhe fazer relações e reintroduzindo representações mentais para cada manifestação da memória traumática. Trata-se “de reparar” a cisão psíquica inicial, a sideração psíquica ligada à irrepresentabilidade das violências. No decorrer da psicoterapia, o vivido, pouco a pouco, torna-se melhor representável e integrável, mais compreensível, o terapeuta ajuda a colocar palavras em cada situação, comportamento, emoção, e a analisar com precisão o contexto, as reações da vítima, o comportamento do agressor. Esta análise acentuada permite ao cérebro associativo e ao hipocampo retomar o controle das reações da amídala cerebral e codificar a memória traumática emocional para transforma-la em memória autobiográfica consciente e controlável.
O objetivo é nunca renunciar a compreende-lo, nem a dar sentido, a qualquer sintoma, pensamento, reação, sensação incongruente, pesadelo, comportamento que não é reconhecido como coerente com o que é e deve fundamentalmente ser dissecado para o associar com a sua origem, para o iluminar por relações que permitam o relacionar às violências sofridas.
Sem vítima, não há agressor
Este trabalho de compreensão permite ao doente evitar ser traumatizado novamente. À medida que as violências tomam sentido em relação ao passado traumatizante do agressor, que as vítimas se dão conta que as violências não as concernem em absoluto, que se jogam sobre outra cena, a da memória traumática do agressor e seu passado, o roteiro colocado em cena pelo agressor não funciona mais, tornando-se possível à vítima de não participar mais. A partir do momento em que a vítima compreende o que se passa, pode identificar a cena e o papel no qual o agressor tenta captura-la e liberar-se, não são mais a presa petrificada da qual o agressor precisa para a sua fantasia perversa. “O jogo” não funciona mais, a vítima pode se colocar “fora de jogo” e deixar o agressor face a uma cena na qual não pode mais jogar o papel de carrasco, por falta de vítima petrificada. A sua história que impunha à vítima volta-lhe em cheio na cara, em espelho. Então é trazido ao seu papel original, um papel de vítima que não quer, sobretudo, representar. “O jogo” não tem mais sentido, nem interesse e não é mais dissociante, o agressor deverá dissociar-se de outra forma ou acalmar-se. Na sua frente, a vítima tornou-se como Perseu face à Medusa, a sua compreensão é o escudo, o espelho oferecido por Minerva (deusa da sabedoria e da razão), evita-lhe que seja petrificada pelo olhar de Medusa.
Resultados
Temos tudo a ganhar com a aposta de proteger todas as vítimas a partir das primeiras violências: ganha-se fazendo cessar imediatamente as violências e colocando em segurança as vítimas, ganha-se fazendo respeitar os direitos das vítimas e permitindo-lhes obter justiça e reparar os danos causados pelas violências sofridas, ganha-se garantindo-lhes a sua não repetição, ganha-se de pôr um termo à impunidade dos autores mas propondo-lhes cuidados precoces para sair da sua adição à violência, ganha-se ao evitar a instalação de perturbações psicotraumáticas crônicas nas vítimas graças a cuidados especializados precoces. Evitando colocar no lugar condutas dissociantes, particularmente as violências exercidas contra o outro, pode-se opor-se à contaminação progressiva dos indivíduos pela violência, e ganha-se, por último, ao tornar a sociedade menos desigual.
Para lutar contra as violências é necessário, então, uma vontade política forte para proteger as vítimas, para fazer respeitar os direitos de toda pessoa de viver em segurança, para tornar a justiça eficaz, para formar em psicotraumatologia os profissionais que atendem as vítimas, e mais particularmente os médicos e outros profissionais da saúde, para criar centros de cuidados especializados, para informar o grande público sobre as consequências das violências e os mecanismos psicotraumatológicos, e educar ao respeito dos direitos do humano e a não-violência.
Bourg la Reine, 26 de dezembro de 2009

Dra. Muriel Salmona
Psiquiatra-psicotraumatóloga, responsável pela Antenne 92 do Instituto de vitimologia, Presidente da Association Mémoire Traumatique et Victimologie : www.memoiretraumatique.org

* Trabalhos da Dra. Muriel Salmona : La mémoire traumatique in L’aide-mémoire en Psychtraumatologie, Paris, Dunod, 2008 e obra no prelo: Violences impensées et impensables ou la mémoire traumatique à l’œuvre.

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24 de mar. de 2010

A MULHER NA HISTÓRIA

“O DESTINO DA MULHER E DA MENINA NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA”

PERSPECTIVA HISTÓRICA & TRADIÇÃO, Ideologia & Geografia (TRECHOS)

O peso das tradições judaico-cristãs: Durante séculos, o direito religioso presidiu à vida social e familiar!

A BÍBLIA E O TALMUD
Na Bíblia, a mulher é a propriedade de um homem: o pai, o marido ou o tutor. E da família… Tem um valor comercial flutuante, não goza do valor moral intrínseco absoluto que atribuímos idealmente ao homem. Um casamento é, por conseguinte, uma transação comercial e as meninas constituem um capital. Uma antiga tradição semítica situava a idade mínima para o casamento as meninas de três anos e um dia e Moisés Maimonide, um médico que viveu no século XII, reafirmou que uma criança de sexo feminino com a idade de três anos e um dia podia ser noiva por copulação desde que houvesse autorização do pai. Uma menina com mais de 12 anos era considerada muito idosa para se casar. Durante séculos, a diferença entre compromisso e casamento não foi muito marcada: ambos eram tornados válidos pela copulação. “Já que as relações heterossexuais eram fundadas sobre uma transação comercial (…) a violação era um crime equivalente ao furto, e o pagamento de uma multa e o casamento podiam legitimar.” (Fl. Rush: 1983) Um princípio bastante específico invalidava as atividades sexuais com crianças abaixo de certa idade, que se aplicava às crianças dos dois sexos: os meninos menores de 9 anos e as meninas com menos de 3 anos não eram considerados como pessoas no plano sexual. Copular com criancinhas não era ilegal, mas “inválido”. Legalmente, a menina permanecia virgem e, por conseguinte, o autor das sevícias não podia nem ser perseguido nem punido.

O PODER DO PAI
Na lei hebraica (herdeira dos códigos babilônicos e assírios) tão constrangedora na vida diária, o que parece surpreendente, é que o poder do pai seja tão grande. Não o poder do homem, mas o do pai! Em nenhum momento, a lei o constrangia: aconselha-o, ou até desaprova-o, mas nunca o submete a esta lei dado que a lei é ele… O poder do pai é total! Tem assim direito de vida e de morte sobre a mulher e seus filhos. Possui o direito de prostituir legitimamente a sua filha no âmbito de uma transação monetária legal. Se ela se prostituir por sua própria iniciativa, ela comete um crime capital que era punido de morte, queimada ou lapidada!… Se tivesse menos de doze anos, esperava-se o seu aniversário para proceder à execução! “A Bíblia não comporta proibição à prostituição: o único crime que reconhece nesta matéria é o da criança que desafia a autoridade paterna.” (Fl. Rush - 1983, p. 39 à 112) As leis e costumes fundamentais relativos às relações sexuais são as que duraram mais. Permanecerão inalteradas com a chegada ao poder da Igreja católica na Europa.

A IGREJA CATÓLICA ROMANA
Durante a era cristã, cavaleiros cristãos, nobres, cruzados e os príncipes da Igreja seqüestravam regularmente mulheres e crianças e os casamentos de crianças serviam correntemente de base nas transações comerciais ou políticas. “O direito Canônico proibia em teoria os casamentos de crianças (12 anos para as meninas, 14 anos para os rapazes), mas as exceções possíveis ao impedimento eram tão frequentes que a regra oficial perdia seu significado: os Pais da Igreja consideravam que extrema juventude era um estado passageiro, a pequena noiva terminaria por atingir a maioridade… (passagem à idade adulta aos 7 anos!)” (Fl. Rush: 1983, pp. 39-112)

CASAMENTO VÁLIDO
"O Judaísmo havia determinado que se podia adquirir uma noiva legalmente quer por contrato, quer comprando-a, quer numa relação sexual com ela. Dado o despeito da Igreja por tudo o que era material, as relações sexuais tornaram-se o elemento determinante de validação." A partir do século V, o papa Gregório decretou que “qualquer mulher que copulasse com um homem a ele pertencia, bem como à família” e mesmo se se tratasse de uma violação, após sequestro, por exemplo. No século XII, o papa Alexandre III declarou que a copulação dava ao casamento um caráter eterno e que este não podia ser dissolvido. Como na tradição hebraica (onde as relações sexuais com uma menina de três anos eram nulas e não existentes), a Igreja considerava que as atividades sexuais com menores de sete anos eram sem consequências. E “o impedimento por afinidade” (ou seja o incesto) não cabia no caso de uma menor de sete anos. “O que é impressionante, é que direito canônico cristão não se preocupa com o fato de que um homem adulto copule com uma criança, senão a partir do momento em que o ato já tenha se produzido!” No caso de incesto, o problema levantado não era a preocupação com o destino das crianças, mas, simplesmente, para saber se “o impedimento de afinidade” era ou não violado.

NA INGLATERRA
O crime de violação evoluiu de um ponto de vista legal a partir do século XIII quando da separação do direito civil do direito religioso (Tratado de Westminster). Mas, foi necessário esperar o século XVI para que a violação de uma criança menor de 10 anos se tornasse crime, o de uma menina entre o 10 e 12 anos permaneceu apenas delito. A acusação podia ser recebida apenas se se pudesse provar a idade da vítima, o que na época, era impossível pois não existia registros oficiais. Esta acusação era fonte de tanta suspeita e embaraço para a denunciante e se traduzia por uma punição tão leve ao violador que poucas vítimas utilizavam o procedimento legal. O direito canônico conservava ainda toda a sua potência no que se referia às relações sexuais com uma menor de sete anos: a violação destas crianças permanecia sempre sem objeto aos olhos da lei.

O PAI ESPIRITUAL
Grandes eram os privilégios dos quais gozavam os membros do clero… A partir da idade de 16 anos, o destino de uma menina estava selado: o casamento ou o mosteiro implicavam a renúncia a todos os bens terrestres… Os pais ou os tutores legais pronunciavam os votos invés das crianças! No século XII, quis-se proibir esta prática tanto os conventos estavam lotados de noviças, mas esta diretiva foi ignorada. Contrariamente ao que se passa hoje, a carreira eclesiástica era mais raramente uma escolha espiritual e resultava frequentemente de uma decisão não pessoal de caráter econômico ou político.
No início do século XVIII, a abadessa do convento de Santa Catherina di Pisola declarou abertamente que os monges e padres tratavam as religiosas e noviças como mulheres e que estas se calavam "pela ameaça de excomunhão que brandiam os seus pais espirituais... Ainda no século XIX e ainda que os testemunhos conservados livravam apenas um mínimo de informação, a metade das acusações de sevícias sexuais relativas ao clero têm como origem as instituições educativas."(Idem) A Igreja evitará todo escândalo e o enfraquecimento do seu poder, e passa a ser quase impossível de levar adiante uma acusação ou condenar um membro do clero… Os Pais da Igreja ainda precisaram, ”além disso, são as próprias mulheres, as sedutoras”. (Idem) Esta ideia vai atingir o seu paroxismo entre os séculos XV e o XVI na Europa, na época da grande caça às bruxas.

A CAÇA ÀS BRUXAS
"Em 1484, o papa Inocente VIII publicou uma bula pontifical que dava poder à Inquisição (braço judicial da Igreja católica romana) de procurar, encarcerar, investigar, torturar e fazer executar as bruxas. (...) O Malleus Malificarum, documento que passou a ser o manual da caça às bruxas, podia fazer de qualquer mulher que preenchesse o seu papel tradicional, uma bruxa.” (Idem): nenhuma mulher, pela sua essência, tinha renunciado nem às piores abominações nem aos excessos mais terríveis, indo mesmo até a copular com o demônio… Acusava-se vinte mulheres para um homem. A bruxaria era, sobretudo um crime de caráter sexual cometido pelas mulheres. Os homens em geral eram preservados deste crime, as crianças não o eram,… sobretudo não as pequenas meninas!!!! No entanto, “Jean Bodin, monge Carmel e professor de Direito canônico vivo, no século XVI, decretou que as medidas legais comuns mostravam-se insuficientes para desenraizar a heresia: as pequenas meninas de 6 anos (idade legal nessa época para consentir a uma atividade sexual na França) estavam em condições de copular com o diabo e, por conseguinte, bem grandes para sofrer um processo"(Idem)… e os suplícios e punições reservados às crianças eram os mesmos que os praticados em adultos. De acordo com … a descrição feita "do demônio" pelas pequenas vítimas, pode-se ver que se assemelha a qualquer homem e que ele engravida, que transmite doenças venéreas e que as feridas provocadas pelo coito, muitas vezes, custam-lhes a vida. Mas a ideia aceita na época era que uma criança demasiado pequena para suportar um homem "não o seria para o demônio". (Idem)

A INGLATERRA E A EUROPA VICTORIANA CULTO DA PEQUENA MENINA E A PROSTITUIÇÃO
No século XIX, assistimos ao desenvolvimento da ciência e da indústria. É também a época em que se manifesta sem retenção o gosto/culto da pequena menina, sob duas formas: por um lado, deificação e, por outro lado, as sevícias sexuais, a violação, a prostituição. A nova invenção da fotografia muito contribuirá para o desenvolvimento da pornografia infantil. O século XIX é igualmente a época do desenvolvimento das novas escolas de psicologia e comportamento humano: ainda assim continua-se dizendo que, "… as mulheres eram desprovidas de impulsos sexuais e era ofensivo supor que os tivessem." Do mesmo modo, as pequenas meninas, se fossem violadas, não sofreriam nenhum dano pois não compreendiam o que o seu agressor lhes fazia. Em contrapartida, os impulsos sexuais do homem eram a fonte do progresso e da civilização. Tratava-se de uma energia necessária, o instinto criativo do macho. E este instinto, pela sua essência, deve infligir sofrimento… Ideia do homem conquistando a natureza,… a mulher representando o papel da natureza!… Os autores franceses não eram os últimos a defender este ponto de vista. De acordo com Honoré de Balzac: “A mulher é uma propriedade que se adquire por contrato; é móvel porque possessão vale título; e mais, a mulher, propriamente falando, é apenas um anexo do homem; ora, cortem, roam, elas lhes pertencem a todos os títulos. Não se preocupem em nada com os seus murmúrios, os seus gritos, as suas dores. A natureza as fez para o nosso uso e para carregar todos os fardos: crianças, tristezas, golpes e penalidades do homem.” (Idem) Como estes impulsos são impossíveis de dominar (sem os quais o homem não seria mais homem), assiste-se a um desenvolvimento alarmante da prostituição. "A literatura da época vitoriana pulula de histórias de gentlemen deflorando virgens, sempre uma pequena menina!"(Idem) Ver a série de histórias publicadas sob o título RELATOS DA MINHA AVÓ E O AMOR: onde se vê a jovem Kate, pré-adolecente, descrever “os esforços e os golpes de bastão até ocorrer a crise final em que o seu seio era invadido pelo dilúvio do esperma paterno”. Seduzir as meninas do povo era considerado como um direito dos herdeiros da classe possuidora e cultivada. Os homens amadores de ninfetas estavam prontos a pagar um bom preço para obter o que desejavam: crianças tiradas dos pardieiros das grandes cidades com freqüência pelo sistema de seqüestro conhecido sob o nome de tráfico de brancos. Do comércio local, passaram ao tráfico nacional seguido pelo internacional. "Uma estimativa feita em Londres, em meados do século XIX, chega à conclusão que cerca de 400 pessoas ganhavam a vida recrutando meninas entre 11 e 15 anos."(Idem) Foi necessária a intervenção da Organização das Nações Unidas para a adoção de medidas contra o tráfico internacional de mulheres e crianças para que cesse o tráfico de brancos.

SITUAÇÃO DE ESCRAVAS
A criança raptada ou vendida era levada para longe de casa e colocada em situação de dependência total. Ver “A casa da escravidão” (The House of Bondage, Kauffman, 1910 - EUA). Ela poderia pensar que era brutalizada pelos seus raptores, mas acabava depressa constatando que eram eles quem a mantinham em vida, é desta maneira que se torna escrava… Revoltar-se, como, o que fazer? Partir, para ir aonde? Quem vai cuidar de mim? Quem de mim gostará? Falar, quem vai acreditar? Submissão = silêncio. Este processo posto em evidência também se aplica à situação de incesto pai-filha…

PROSTITUIÇÃO: JUSTIFICAÇÃO DA EXPLORAÇÃO SEXUAL
"Definindo a prostituição como um mal necessário (80% das prostitutas são vítimas de incesto - nota acrescentada), a sociedade chegava a convencer-se que a exploração sexual era justificada pelo fato de que as mulheres perdidas ou decaídas, qualquer que fosse sua idade ou a causa, eram ninfomaníacas e pecadoras e que nada, nem ninguém as podia salvar. Não mereciam outra coisa senão realizar a existência que escolheram.” (Idem) É sempre o mesmo discurso hoje: a mulher violada levanta suspeita na opinião pública. “Procurou-o, tem aquilo que merece!” - “Ela gosta, é ela que quer!” E o pai, que violou a sua filha, dirá: “Ela sabia o que ia lhe acontecer!… Era tão carinhosa, foi ela quem me seduziu!” “Podemos pensar que estamos muito longe do universo dos nossos antepassados, mas a ideia de que as mulheres são propriedade sexual dos homens persiste, no entanto. Consideram ainda que um homem não pode violar a sua mulher pois não há abuso sexual contra algo que lhe pertence.” Esta ideia é muito difundida entre os pais abusadores em relação a sua filha!

A LUTA CONTRA OS ABUSOS SEXUAIS NO SÉCULO XIX
Mulheres como Joséphine BUTLER, nascida no Reino Unido, em 1828, revelaram e denunciaram as práticas sexuais do seu tempo. Prostitutas eram ameaçadas, insultadas de maneira obscena, incomodadas pela polícia e cafetões de casas fechadas que alugavam os serviços de vadios para as atacar. O Exmo. Senhor James STANSFIELD, membro eminente do Parliament, juntou-se às suas filas. William STEAD, editor do Pall Mall Gazette, juntou-se também as filas dos que lutavam contra a exploração sexual. Fez a experiência de adquirir uma menina de 13 anos para provar aos seus leitores que era possível: o Parliament foi forçado a criar a idade do consentimento aos 16 anos para o Reino Unido. Graças a estes pioneiros, as Nações Unidas adotaram as medidas contra o tráfico internacional de mulheres e crianças. HOJE Existem redes que fornecem “adolescentes às redes européias de prostituição, principalmente, meninas entre 14 à 17 anos, provenientes das Filipinas ou da Tailândia. Os países asiáticos são as principais vítimas da prostituição infantil. Recenseia-se, hoje, mais de cem mil prostituídas menores de 16 anos." No Iêmen, Arábia Saudita, Etiópia, Sudão, a excisão de meninas ainda é prática; a operação é frequente na Jordânia, Síria, Costa de Marfim, Dogons da Nigéria e é obrigatória em numerosas tribos africanas. No Sudão, Somália, Namíbia, Jibuti, Etiópia, África Preta pratica-se muito, além disso, a dolorosa infibulação* (órgãos genitais costurados ou cauterizados). Em julho de 1974, o professor Pierre Henry, especialista em erotismo africano, tentava justificar a excisão nestes termos: “A excisão é uma tentativa consequente para favorecer a integração sexual da mulher em função de critérios estritamente sociais. A vocação da mulher guineense é a maternidade. A excisão suprime o órgão do prazer estéril, por conseguinte, associal, para deixar subsistir apenas o órgão do prazer fértil, por conseguinte, social”…
O. Boissier, Trabalho de graduação em CIÊNCIA SOCIAL do TRABALHO - 1984/88 (Le Louvière)

Tradução Mirian Giannella

*As práticas da mutilação feminina As mutilações dos genitais femininos, chamadas também de circuncisão feminina, compreendem vários tipos de práticas:
• A abscisão consiste no corte parcial ou total do clitóris. A abscisão pode ser realizada logo após o nascimento da menina, depois de meses ou anos, ou na entrada da puberdade. É sempre praticada por mulheres anciãs com algo cortante que pode ser navalha, faca ou pedaço de vidro, sem preocupações com a assepsia.
• A labiotomia é a extirpação dos grandes e/ou pequenos lábios, muito praticada na Somália, onde se estima que 98% das mulheres foram submetidas a esse procedimento doloroso. Está difundida também na Eritréia, Etiópia, Serra Leoa, Sudão, Quênia, Mali e Burkina Faso. Embora sejam países de maioria islâmica, a prática não é ligada a preceitos corânicos que prescrevem somente a circuncisão masculina. Existem documentos que indicariam como essa tradição já era praticada há mais de 6 mil anos. • A infibulação é o procedimento em que a vagina vem quase totalmente costurada, deixando somente uma apertura para o escoamento da urina e do sangue menstrual. Em algumas tribos, se introduz um pequeno canudinho – fíbula – para manter a abertura. Muitas vezes com a abscisão do clitóris, a infibulação é realizada na puberdade e pode ser efetuada outras vezes durante a vida da mulher. Antes do casamento, mulheres anciãs reabrem a sutura para propiciar o ato sexual e o parto. A repetição da infibulação provoca distúrbios psíquicos além de hemorragias e infecções na região genital, que podem conduzir à esterilidade, infecção e morte da mulher.
Fonte: Feridas para sempre, Revista Mundo e Missão
http://www.pime.org.br/mundoemissao/mulhersempre.htm

Stop-FGM. Stop às mutilações genitais femininas”, campanha lançada pela Associação italiana de mulheres para o desenvolvimento (Aidos), em colaboração com a Associação das mulheres da Tanzânia (Tamwa) e com a “Organização não há paz sem justiça”. Para acessar: www.stopfmg.org

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Magia diz: É uma indecência imoral totalmente indigna como eles invertem as lógicas para culpabilizar crianças indefesas! É esta a transmissão que nos ocultam? Esta a violência selvagem a que, ainda, estamos submetidos? Os filhos não são propriedade do pai e a mulher não é propriedade dos homens. Até quando, conviveremos com esta barbárie? Morte ao pai onipotente! Queremos nossos direitos!